Uma Crítica a Michel Foucault e sua Impostura

Uma crítica a Michel Foucault e sua impostura



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VIANA, Nildo. Uma Crítica a Michel Foucault e sua Impostura. Revista Espaço Acadêmico.
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O Pensamento Político de Errico Malatesta



Esse texto divide-se em quatro partes fundamentais para a apresentação do pensamento político de Malatesta: a.) breve exposição da vida do autor, do ambiente político em que ele esteve inserido e seus principais interlocutores; b.) discussão teórico-epistemológica, que distingue ciência de doutrina/ideologia e, assim, métodos de análise e teorias sociais do anarquismo, noção que será aplicada à própria exposição do pensamento malatestiano; c.) elementos teórico-metodológicos para a análise social; d.) concepção de anarquismo e posições estratégicas.
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“Errico Malatesta continua vivo e integralmente 
presente em nossos espíritos e memórias.”
Luigi Fabbri




Introdução

Abordar o pensamento político de Errico Malatesta não constitui uma tarefa simples e constitui algo que deve ser levado a cabo com o devido cuidado. Considera-se relevante ter em mente três questões fundamentais que atravessam qualquer análise mais criteriosa de sua obra: 1.) Ele foi anarquista por mais de 60 anos de sua vida; 2.) Suas obras completas não estão disponíveis, sequer em italiano; 3.) Ele nunca foi, e nem pretendeu ser, um grande teórico; foi essencialmente propagandista e organizador. 

Isso significa que as leituras gerais, como a que agora se pretende realizar, devem considerar que não há uma uniformidade em relação às suas posições nesses 60 anos, algumas das quais variam significativamente. Devem também considerar que, como parte importante de sua obra não é conhecida, não se podem apontar conclusões demasiado definitivas. Finalmente, devem considerar que, mesmo que a maior parte de suas obras seja composta por escritos de divulgação e vulgarização do anarquismo, e que, mesmo não tendo o autor a envergadura de outros pensadores libertários, ele possui contribuições relevantes, que serão em seguida brevemente esposadas.

O pensamento político de Malatesta será retomado a seguir, tomando em conta essas precauções metodológicas e visando expor continuidades e permanências de seu pensamento nesse longo período de produção, que se estende dos anos 1870 aos anos 1930. Para tanto, o texto divide-se em quatro partes fundamentais: a.) breve exposição da vida do autor, do ambiente político em que ele esteve inserido e seus principais interlocutores; b.) discussão teórico-epistemológica, que distingue ciência de doutrina/ideologia e, assim, métodos de análise e teorias sociais do anarquismo, noção que será aplicada à própria exposição do pensamento malatestiano; c.) elementos teórico-metodológicos para a análise social; d.) concepção de anarquismo e posições estratégicas.

Com isso, espera-se dar ao leitor noções relativamente aprofundadas do pensamento político do autor; em caso de interesse, podem-se continuar os estudos, a partir da bibliografia ao final do texto. 


Dados biográficos e ambiente político

Errico Malatesta (1853-1932) foi um importante anarquista italiano, que contribuiu, em teoria e prática, com a trajetória do anarquismo em muitos países; militou em distintas localidades na Europa, nas Américas e na África. Tomando por base alguns estudos sobre o autor (Fabbri, 2010; Nettlau, 2008, 2012; Richards, 2007a), podem-se delinear alguns de seus dados biográficos e caracterizar brevemente o ambiente político em que ele viveu.

Filho de uma família de comerciantes com algum recurso, estudou no Liceu de Santa Maria Capua Vetere, localidade de seu nascimento, ingressando posteriormente na Faculdade de Medicina, da Universidade de Nápoles. Os contratempos, em parte de ordem política, fizeram-no abandonar o curso, viver, a partir de então, de biscates, dentre eles os ofícios de mecânico e eletricista. Ainda jovem, acreditou por algum tempo no republicanismo de Giuseppe Mazzini, mas logo o abandonou, sendo convertido ao anarquismo entre 1871 e 1872 – em cujo processo Mikhail Bakunin foi determinante –, doutrina que defendeu até sua morte em Roma. 

Dos quase 80 anos de vida, mais de 60 deles Malatesta foi anarquista. Acompanhou, por isso, um período amplo da trajetória dessa ideologia em distintas localidades, os fluxos e refluxos dos movimentos populares e do próprio anarquismo, assim como diferentes ideias e práticas hegemônicas que se deram nesse período. 

Participou, com Bakunin, da Aliança da Democracia Socialista, em 1872, e de uma tentativa de rearticulação dessa organização política em 1877, encabeçada por Piotr Kropotkin; criou e animou o Partido Revolucionário Socialista Anarquista, de 1891, o Partido Anarquista de Ancona, de 1913 e a União Comunista Anarquista Italiana / União Anarquista Italiana de 1919/20. Foi membro da seção italiana da Primeira Internacional, a partir de 1871; fundou os primeiros sindicatos revolucionários na Argentina, no fim dos anos 1880; participou de greves na Bélgica, em 1893 e de protestos contra o aumento do pão na Itália, em 1898; contribuiu com a União Sindical Italiana (USI); participou da greve geral e da Semana Vermelha de 1914, na Itália; articulou a esquerda antifascista na Aliança do Trabalho, no início dos anos 1920. Participou, de armas à mão, das insurreições de Apulia, em 1874, de Benevento, em 1877, e foi preso mais de uma dezena de vezes. 

Luigi Fabbri, numa biografia sobre Malatesta, enfatiza algumas de suas características como anarquista, mostrando sua completude militante:

“Sua vida ativa como anarquista foi um monólito de humanidade: unidade de pensamento e ação, balanceamento entre sentimentos e razão, coerência entre pregar e fazer, conexão da energia inflexível de luta com a bondade humana, fusão de uma atrativa doçura com a firmeza mais rígida de caráter, concordância entre a mais completa fidelidade às suas bandeiras e uma celeridade mental que fugia de todo dogmatismo. [...] Ele foi um anarquista completo.” (Fabbri, 2010)

Essa qualidade de conciliar características fundamentais para a militância anarquista envolveu, também, ainda segundo Fabbri, a permanente busca de conciliação entre meios e fins e as saudáveis relações estabelecidas com as massas oprimidas.

“A utilização dos meios necessários à vitória permaneceram, naquilo que ele disse e fez, em constante relação com os fins libertadores aos quais se propunha chegar, o entusiasmo e a fúria do momento nunca fizeram com que ele perdesse de vista as necessidades futuras, paixão e bom-senso, destruição e criação, sempre harmonizados em suas palavras e em seu exemplo; essa harmonia, tão indispensável para fertilizar resultados, impossível de ser ditada de cima, ele levou a cabo em meio ao povo, confundindo-se com ele, sem se preocupar que isso pudesse fazer seu trabalho pessoal desaparecer no vasto e ondulado oceano das massas anônimas.” (Fabbri, 2010)

Tais características foram demonstradas no amplo contexto, tanto em termos históricos como geográficos, da militância de Malatesta. Foram notadas em suas relações com distintos interlocutores, anarquistas ou não, e em seu envolvimento nos mais diferentes debates. Parte significativa de seu pensamento político foi formulada em meio a essas interlocuções e debates, num contexto marcado por episódios relevantes.

Como em toda a trajetória do anarquismo, um senso comum insistiu em relacionar o anarquismo à desordem, à confusão e ao caos, e as disputas ideológico-doutrinárias, em especial com as derivações socialdemocratas e bolcheviques do marxismo, terminaram por reforçar, por esforço desses adversários políticos e sem qualquer fundamento histórico, visões de que o anarquismo seria pequeno-burguês, liberal, idealista, individualista, espontaneísta, contrário à organização e ligado essencialmente aos camponeses e artesãos do “mundo atrasado” em declínio. (Corrêa e Silva, 2013a; Silva, 2013)

No socialismo em geral, fruto do debate da geração precedente, houve um período de ampla aceitação, no que tange aos métodos de análise e teorias sociais, de teorias evolucionistas (teleológicas), de determinismos de ordem econômica e/ou estrutural, de posições derivadas do positivismo e do cientificismo. Essas concepções, combatidas por Malatesta, enfatizavam, dentre outras coisas, que a sociedade caminharia necessariamente ao socialismo, que a estrutura da sociedade (principalmente de base econômica) determinaria seus aspectos políticos e culturais e que as ciências sociais deveriam ter como modelo as ciências naturais. O autor também combateu as posições que visavam fundir socialismo e ciência, por meio das noções de “socialismo científico” e mesmo de “anarquismo científico”.

Dentre os debates que permearam o campo anarquista, alguns podem ser destacados. Primeiramente, os debates historicamente mais relevantes entre os anarquistas sobre organização, reformas e violência: necessidade ou não de organização dos anarquistas e, em caso positivo, a melhor maneira de se organizar; possibilidade das lutas por reformas conduzirem a um processo revolucionário; papel da violência no processo revolucionário. (Corrêa, 2012: 159-186) O contexto dos anos 1880 e 1890 na Europa, marcado pelo período posterior à Comuna de Paris e de muita repressão, contribuiu com as posições insurrecionalistas da chamada “propaganda pelo fato”, preponderantes nesse período no continente e corroboradas pelas resoluções do Congresso de 1881, que conformou a pouco duradoura Internacional Negra. 

Por mais que Malatesta tenha defendido, na maior parte de sua vida, o dualismo organizacional, a luta pelas reformas como caminho para a revolução e a violência como suporte ao movimento organizado de trabalhadores – as três posições que, de acordo com Michael Schmidt e Lucien van der Walt (2009), caracterizam, desde uma perspectiva histórica, o “anarquismo de massas” – houve um período, em especial nas duas décadas mencionadas, em que ele foi influenciado por posições clássicas do “anarquismo insurrecionalista”, em especial ao investir nas insurreições sem base popular significativa, como a de Benevento, em 1887, e por acreditar que a violência descolada dos movimentos organizados de trabalhadores poderia servir como gatilho de mobilização. (Pernicone, 2009) Ainda assim, o autor combateu, durante toda a vida, o antiorganizacionismo anarquista – que foi forte na Itália, entre outros motivos, pelas posições de Luigi Galleani – e as “influências burguesas no anarquismo”, nos termos de Fabbri (2001), provindas do individualismo liberal, com o qual flertaram alguns anarquistas, em especial na Europa e nos Estados Unidos.

A participação determinante dos anarquistas no sindicalismo de intenção revolucionária (sindicalismo revolucionário e anarco-sindicalismo) também foi presenciada por Malatesta, tanto nas Américas quanto na Europa; neste último caso, a fundação da Confédération Générale du Travail (CGT), na França, em 1895, terminou constituindo um marco, pois assinalou a passagem da hegemonia insurrecionalista para a o anarquismo de massas na região. Na maioria dos casos, os anarquistas dissolveram-se dentro das organizações sindicais; em muitos casos, defenderam a “neutralidade sindical”, no caso do sindicalismo revolucionário; em outros, como na Federación Obrera Regional Argentina (FORA), a partir de 1905, e na Confederación Nacional del Trabajo (CNT), a partir de 1919, defenderam o anarco-sindicalismo, vinculando programaticamente os sindicatos ao anarquismo e fazendo deste sua doutrina oficial. Em ambos os casos, entretanto, esse modelo de sindicalismo demonstrou-se classista, combativo, autônomo/independente das classes e instituições inimigas, democrático (com organização pela base, autogerida e federada) e revolucionário. Malatesta posicionou-se em distintas circunstâncias sobre a relação entre anarquismo e sindicalismo, como no Congresso Anarquista de Amsterdã, em 1907, quando polemizou com Pierre Monatte.[1] 

No contexto da Segunda Internacional (1889-1916) houve, além da expulsão dos anarquistas logo no início do processo, um fortalecimento do socialismo parlamentar/eleitoral e reformista, que tomou corpo na socialdemocracia e no “possibilismo”, assim como a perda de importantes anarquistas do primeiro período para esse campo, como foram os casos de Andrea Costa, Paul Brousse e Benoit Malon. O interregno entre a segunda e a terceira internacionais foi marcado, em todo o campo socialista, pelos conflitos entre aqueles que tomaram um lado na Primeira Guerra e os que se opunham à guerra e entre os anarquistas isso não foi diferente. Um grupo restrito de 16 anarquistas – dentre os quais, entretanto, se encontravam militantes de renome, como Kropotkin e Jean Grave – terminaram, ao apoiar os aliados, distanciando-se da imensa maioria dos anarquistas, que permaneceu contrária à guerra, como foi o caso de Malatesta. A Terceira Internacional (1919-1943) foi marcada pelo fortalecimento mundial do bolchevismo pós Revolução Russa e do próprio bloco soviético que, progressivamente, demonstrou que o “socialismo” de Estado nada mais era do que a ditadura de um partido sobre as classes oprimidas por meio do aparelhamento do Estado. Essa situação, a partir de 1921, tornou-se clara aos anarquistas do mundo todo, por razão das denúncias de repressão e supressão de todas as correntes socialistas e revolucionárias dos países do bloco que se recusavam a se submeter aos ditames do Partido Comunista. Malatesta possui uma produção crítica significativa acerca dos socialistas e comunistas[2] e alguns escritos sobre o apoio desse grupo anarquista aos aliados na guerra.[3] 

Nos fins de sua vida, o autor ainda presenciou, na Itália, a ascensão do fascismo e a retomada da problemática do nacionalismo, com a qual havia em alguma medida convivido, na ocasião dos movimentos de Garibaldi e Mazzini. Polemizou, também, com Nestor Makhno e Piotr Arshinov, autores de “A Plataforma Organizacional da União Geral dos Anarquistas”, sobre a melhor maneira de conceber a organização específica dos anarquistas.[4] 


Ciência e doutrina/ideologia

Para a distinção dessas categorias, o ponto de partida de Malatesta é a noção de “socialismo/anarquismo científico” que, surgida durante o século XIX, avançou pelo século XX, tanto no campo do marxismo como do anarquismo. Ainda que as concepções de “socialismo científico” e “anarquismo científico” tenham diferenças substantivas e se apoiem em elementos teórico-metodológicos distintos, elas possuem uma similaridade: pretendem dar à doutrina político-ideológica do socialismo, mesmo em diferentes correntes, um caráter científico. Para Malatesta, esse vínculo socialismo-ciência é equivocado: 

“O cientificismo (não digo a ciência) que prevaleceu na segunda metade do século XIX produziu a tendência de considerar verdades científicas, ou seja, leis naturais e, portanto, necessárias e fatais, o que era somente o conceito, correspondente aos diversos interesses e às diversas aspirações, que cada um tinha de justiça, progresso etc., da qual nasceu ‘o socialismo científico’ e, também, o ‘anarquismo científico’ que, mesmo professados por nossos grandes representantes, sempre me pareceram concepções barrocas, que confundiam coisas e conceitos distintos por sua própria natureza.” (Malatesta, 2007a: 39-40)

As noções de socialismo e anarquismo científico apresentam, segundo ele, uma confusão de categorias que são distintas e não podem ser tratadas como se fossem uma só. Em muitos casos, argumenta Malatesta (2007a: 39), a noção científica, fundida ao socialismo/anarquismo, seria somente “o revestimento científico com o qual alguns gostam de encobrir seus desejos e vontades”; a utilização do adjetivo “científico” constituiria, na maior parte dos casos, tão somente uma base para tentativas de autolegitimação.

Partindo dessa crítica, o autor defende a necessidade de definir e distinguir duas categorias fundamentais que, ainda que se relacionem, não podem ser reduzidas a uma única. 

“A ciência é a compilação e a sistematização do que se sabe e do que se acredita saber; enuncia o fato e trata de descobrir sua lei, ou seja, as condições nas quais o fato ocorre e necessariamente se repete. [...] A missão da ciência é descobrir e formular as condições nas quais o fato necessariamente se produz e se repete: ou seja, é dizer o que é e o que necessariamente deve ser.
O anarquismo é, distintamente, uma aspiração humana, que não se funda em nenhuma necessidade natural verdadeira ou supostamente verdadeira, mas que poderá se realizar segundo a vontade humana. Aproveita os meios que a ciência proporciona ao homem na luta contra a natureza e contra as vontades contrastantes; pode tirar proveito dos progressos do pensamento filosófico quando eles servirem para ensinar aos homens raciocinar melhor e distinguir com maior precisão o real do fantástico; mas não se pode confundi-lo, sem cair no absurdo, nem com a ciência e nem com qualquer sistema filosófico.” (Malatesta, 2007a: 41-43)

Quando reflete sobre o anarquismo, Malatesta, na realidade, aborda um elemento que faz parte de algo mais amplo, e pode ser definido pelas categorias doutrina e/ou ideologia, aqui abordadas por meio de uma categoria-síntese: doutrina/ideologia. Portanto, ao discutir ciência e anarquismo, Malatesta distingue mais amplamente as categorias ciência e doutrina/ideologia.[5]

A concepção malatestiana de ciência implica uma noção de que seu objeto está no passado e no presente; daquilo que foi e/ou que é. Ela toma por base fenômenos que envolvem a vida natural e social, desde um ponto de vista teórico e/ou histórico, estrutural e/ou conjuntural, e estabelece os marcos para uma explicação desses fenômenos. A capacidade de generalização, ou seja, da explicação de um fenômeno ou conjunto de fenômenos, constitui um de seus aspectos centrais. A ciência nunca tem por objeto o futuro; ela pode, no máximo, realizar predições sobre aquilo que, baseado nas análises do que foi e do que é, necessariamente será, como decorrência dessa interpretação passada e presente.

A doutrina/ideologia, distintamente, oferece um quadro de referência pautado em um conjunto de valores e numa noção ética que proporciona um ferramental para a análise da realidade passada e presente, estrutural e conjuntural, mas que também permite julgar essa realidade, oferecendo elementos para que se pense, a partir daquilo que foi e que é, aquilo que deveria ser. Ou seja, a doutrina/ideologia oferece uma base valorativa que permite julgar e orientar posições políticas, ideias e ações no sentido de manter ou modificar o status-quo, em um sentido normativo.

Malatesta considera o anarquismo uma doutrina/ideologia que, pautada em aspirações humanas, afirma aquilo que a sociedade deveria ser, posição ético-valorativa de um devir que está para além do campo científico. Capitalismo e Estado devem ser destruídos, dando lugar a uma sociedade sem classes, exploração e dominação, não porque, por meio de uma análise científica do atual sistema de dominação constata-se que esse é o fim natural da evolução da sociedade, rumo a um telos conhecido, mas porque, segundo valores e noções éticas e a partir de uma posição normativa, considera-se que a sociedade poderia ser melhor e mais justa do que atualmente é, e que a ação humana, mesmo dentro dos limites estruturais, deveria ser utilizada para impulsionar uma transformação revolucionária dessa sociedade. 

Esse objetivo, que se poderia chamar “finalista”, não decorre de uma predição necessária daquilo que obrigatoriamente deve ser, e nem constitui uma necessidade verdadeira de uma decorrência normal do desenvolvimento do atual sistema de dominação; trata-se de uma possibilidade desejada, de algo que se considera melhor e mais justo do que aquilo que está dado.

A distinção conceitual do autor entre as categorias ciência e doutrina/ideologia poderia subsidiar críticas de que ele defenderia uma cisão entre teoria e prática, a neutralidade da ciência e/ou do cientista, entre outras críticas que são frequentemente endereçadas a pensadores contrários ao vínculo ciência-doutrina/ideologia. Malatesta foi um homem muito mais dedicado à prática política do que à produção teórico-científica. Criou e participou de organizações anarquistas, movimentos de massas, insurreições e iniciativas que envolveram a propaganda escrita e oral. Preso diversas vezes, passou praticamente 10 anos de sua vida nas prisões. 

Não se pode dizer que, ao defender essa distinção entre as categorias ciência e doutrina/ideologia, Malatesta estivesse pregando qualquer tipo de “cisão entre teoria e prática”; suas posições foram elaboradas exatamente no sentido de proporcionar uma compreensão mais adequada da realidade para, a partir dela, conceber as melhores maneiras de intervir, promovendo o avanço do programa anarquista, rumo aos objetivos por ele estabelecidos. Deve-se, ainda, adicionar que o autor também não sustentou a neutralidade da ciência ou qualquer posição que permita aproximá-lo do positivismo.[6] 

Malatesta possui uma noção clara da relação entre ciência e doutrina/ideologia, e a demonstra em suas reflexões acerca do conhecimento científico da realidade social e do anarquismo. Para ele, métodos de análise e teorias sociais pertencem ao campo científico: buscam subsidiar um conhecimento da realidade assim como ela é; o anarquismo, partindo dessas considerações, estabelece seus objetivos finalistas, que o autor chama de “anarquia”, preconizando como a realidade deveria ser, e concebendo estratégias e táticas para transformar a realidade nesse sentido.

Enfim, pode-se afirmar que a distinção teórico-conceitual proposta por Malatesta é feita, em realidade, para potencializar a prática política anarquista; tal é a maneira encontrada por ele para conciliar teoria e prática.

Essa distinção será aqui aplicada à exposição do pensamento político do próprio autor; apresentar-se-ão em seguida suas noções básicas de teoria social para a análise da realidade e, depois, sua concepção de anarquismo e suas posições estratégicas.


Teoria social

Conhecendo as posições científicas vigentes em seu tempo e articulando parte delas com elaborações próprias e originais, Malatesta terminou por constituir um ferramental relativamente inovador e eficaz para a análise social que parece, ainda hoje, oferecer possibilidades.[7]

Malatesta (2008: 101) concebe o processo de socialização, a relação entre indivíduo e sociedade, por meio de um vínculo indissociável entre um e outra: “O indivíduo humano não é um ser independente da sociedade, mas seu produto.” O indivíduo, dessa maneira, só pode ser concebido dentro e como parte da sociedade, não somente sofrendo seus efeitos, mas participando ativamente de sua conformação. Para Malatesta (2008: 202), “entre o homem e o ambiente social há uma ação recíproca. Os homens fazem a sociedade ser o que é, assim como a sociedade faz os homens serem o que são.” Trata-se, assim, de uma relação de interdependência entre indivíduo e sociedade, em que as partes se apoiam uma na outra e cujas trajetórias estão diretamente imbricadas. A ação humana na sociedade envolve indivíduo e sociedade e relaciona, ao mesmo tempo, cada um e todos.

Considera-se que a realidade social pode ser analiticamente dividida em três esferas: econômica, política/jurídica/militar e cultural/ideológica. A maneira como Malatesta concebe as relações entre essas três esferas pode ser interpretada na chave da Teoria da Interdependência das Esferas, que sustenta ser o social uma totalidade constituída a partir do resultado da relação interdependente entre essas três esferas. (Rocha, 2009; FAU-FAG, 2007) Essa interdependência pode ser notada na obra malatestiana tanto em termos crítico-destrutivos quanto propositivo-construtivos, demonstrando coerência entre estratégia e análise social. 

Ao analisar a sociedade de seu tempo, o autor criticou a dominação nas três esferas. Os diferentes tipos de dominação – exploração, dominação político-burocrática, coerção e alienação cultural – dão corpo a uma dominação generalizada, de caráter sistêmico, reforçando-se uns aos outros. Essa conformação interdependente constitui um sistema de dominação em que as partes relacionam-se de maneira dinâmica. Se a dominação articula-se e reforça-se dessa maneira, os projetos emancipatórios, defende o autor, devem ser levados a cabo, também, de maneira interdependente: “a emancipação moral, a emancipação política e a emancipação econômica são indissociáveis”. (Malatesta, 1989b: 141)

Ao não estabelecer de antemão uma determinação obrigatória e necessária entre as três esferas, Malatesta relativiza posições de outros socialistas, que sustentam, ainda que em bases e níveis diferenciados, uma determinação, mesmo que em última instância, da esfera econômica em relação às outras. Para o autor, na dinâmica social, a economia certamente tem possibilidade de influenciar as outras esferas, e, em muitos casos, de fato as influencia. Entretanto, não se pode considerar esse processo de maneira determinista ou mecânica na chave infra e superestrutura; as outras esferas possuem, também, e ao mesmo tempo, capacidade de influenciar a economia e, também, em muitos casos, a influenciam. Para Malatesta, o social constitui uma totalidade interdependente e assim deve ser avaliado. Trata-se de sustentar uma multicausalidade que só pode ser compreendida em sua totalidade e segundo a noção de interdependência, sem a adoção a priori de quadros de referência monocausais.

Se por um lado Malatesta rompe definitivamente com o idealismo que buscava explicar a sociedade sobre bases teológicas e/ou metafísicas, ele rompe, também, de alguma forma, com a clássica distinção dos socialistas do século XIX entre materialismo e “idealismo”, propondo, conforme colocado, uma conciliação entre a totalidade das três esferas e reconhecendo, juntamente com a relevância dos fatos em relação às ideias, a importância das ideias em relação aos fatos. Ao criticar as posições extremadas e que priorizam de antemão a influência e a determinação de uma esfera em relação às outras, Malatesta enfatiza:

“Há alguns anos, todo mundo era ‘materialista’. Em nome de uma ‘ciência’ que, definitivamente, erigia em dogmas os princípios gerais extraídos de conhecimentos positivos muito incompletos, tinha-se a pretensão de explicar toda a psicologia humana e toda a história atormentada da humanidade por simples necessidades materiais elementares. [...] Hoje, a moda mudou. Hoje, todo mundo é ‘idealista’: todos [...] tratam o homem como se ele fosse um puro espírito, para quem comer, vestir-se, satisfazer suas necessidades fisiológicas fossem coisas negligenciáveis.” (Malatesta, 1989b: 138-139)

Além de colocar em questão as generalizações científicas elaboradas sobre bases restritas, Malatesta critica as explicações reducionistas, tanto que deduzem tudo das necessidades materiais, quanto que as ignoram completamente. Dever-se-ia, distintamente, tomar em conta a relação indissociável entre as três esferas, entre fatos e ideias, e as determinações em distintos sentidos, de acordo com os variados contextos, dando corpo a totalidades de caráter sistêmico. Esses sistemas, mesmo que possam ser modificados ou transformados, possuem esse caráter por relacionar permanente e dinamicamente suas partes e por aquilo que ocorre em cada uma de suas partes ter impacto no todo. Assim, a sociedade constitui um sistema e as esferas suas partes.

Para Malatesta (2000a: 8), a sociedade caracteriza-se pelos distintos conflitos que a estruturam; a realidade social corresponde sempre a uma determinada posição das diversas forças que estão em jogo. Ele considera que “a sociedade atual é o resultado das lutas seculares que os homens empreenderam entre si”; essas lutas, esses conflitos, são os traços mais determinantes na conformação da sociedade. Por isso, as posições malatestianas diferenciam-se sobremaneira daquelas que tendem a minimizar o papel dos conflitos na sociedade e não explicam adequadamente a mudança e a transformação social. 

Entretanto, para o autor, esses conflitos, que existem permanentemente em qualquer sociedade, não são sempre, necessariamente, conflitos de classes.

“Conflitos de interesses e de paixões existem e existirão sempre pois, ainda que se conseguisse eliminar aqueles existentes até o ponto de se chegar a um acordo automático entre os homens, outros conflitos se apresentariam a cada nova ideia que germinasse em um cérebro humano.” (Malatesta, 2008: 102)

Esses conflitos sociais – que podem envolver classes, grupos e indivíduos – são protagonizados por forças sociais dinâmicas, que se encontram permanentemente em movimento, em relação, em contraposição. Para Malatesta (2008: 72), “a história caminhará, como sempre, segundo a resultante das forças”; ou seja, a história é a história dos conflitos sociais, das relações entre as diferentes forças sociais em jogo. Cumpre ressaltar que força social, nessa acepção, extrapola a noção de força bruta, coerção, violência, e abarca elementos das três esferas. 

São, portanto, os conflitos dinâmicos entre várias forças sociais que conformam uma determinada realidade; desde uma perspectiva histórica, são esses conflitos que estabelecem as relações de poder, que conformam relações dominadoras, hierárquicas, subservientes entre classes, grupos e indivíduos. Aqueles que possuem a capacidade de mobilizar a maior força social nesses conflitos conseguem se impor aos outros; trata-se de uma batalha permanente. (Malatesta, 2008: 52)

Compreender a sociedade como esse conjunto dinâmico e conflitivo de diferentes forças sociais implica, para Malatesta (2008: 30), um abandono do evolucionismo e do teleologismo, também bastante sustentados no século XIX entre os socialistas em geral: “Não há lei natural que obrigue a evolução em um sentido progressivo em lugar do regressivo: na natureza, há progressos e regressos.” A correlação de forças na sociedade é permanentemente dinâmica e, segundo avaliações normativas, pode ser julgada como progresso ou regresso. Essa noção também subsidia a posição já comentada de que o capitalismo e o Estado não se destroem por si mesmos e que o socialismo não é uma necessidade histórica gerada, automática e obrigatoriamente, pelas contradições do próprio sistema capitalista/estatista. (Malatesta, 2008: 75) 

Sua posição acerca da interdependência das esferas parece também nortear sua concepção sobre a relação entre estrutura social e ação/agência humana. Malatesta opõe-se às abordagens estruturalistas e mecanicistas, que não concedem espaço à vontade humana e segundo as quais

“a vontade – potência criadora cuja natureza e origem não podemos compreender [...] – que contribui pouco ou muito com a determinação da conduta dos indivíduos e da sociedade, não existe, não é mais que uma ilusão. Tudo aquilo que foi, é e será, desde o curso dos astros até o nascimento e a decadência de uma civilização, desde o perfume de uma rosa até o sorriso de uma mãe, desde um terremoto até o pensamento de Newton, desde a crueldade de um tirano até a bondade de um santo, tudo devia, deve e deverá suceder por uma sequência fatal de natureza mecânica, que não deixa qualquer possibilidade de variação.” (Malatesta, 2007b: 256)

Nessas abordagens, a ação humana seria completamente determinada pela estrutura social; o destino da sociedade estaria estabelecido de antemão e qualquer ação voluntária não seria mais do que uma ilusão, de acordo com o exemplo de Spinoza citado por Malatesta (2008: 68), no caso da pedra que “ao cair, tivesse consciência de sua queda e acreditasse que está caindo porque quer cair”. 

Para o autor, distintamente, a vontade e a ação humana possuem significativo potencial na conformação da sociedade: “a história é feita pelos homens”, afirma. E a base da ação humana é a vontade; “é necessário admitir uma força criadora, independente do mundo físico e das leis mecânicas e esta força se chama vontade”. Elemento fundamental da esfera cultural/ideológica, a vontade impulsiona a ação humana e pode subsidiar processos de mudança e transformação social. Ela pode ser, e em geral é, influenciada pelas posições hegemônicas (econômicas, políticas etc.) vigentes, mas não é completamente determinada por elas; há espaço para a consciência e para a ação no sentido da mudança e da transformação social. (Malatesta, 2008: 175, 29)

Tais posições fizeram com que Malatesta fosse acusado, diversas vezes, de ser um completo voluntarista, um “idealista”, no sentido de defender uma transformação com base na mudança de consciências. No entanto, essas posições parecem equivocadas. Ainda que reconheça a relevância da esfera cultural/ideológica em geral, tanto nos processos de dominação, quanto de emancipação, e ainda que defenda que, nesses processos, a vontade constitui um elemento central, Malatesta (2008: 29, 104) reconhece seus limites: “certamente essa vontade não é onipotente, visto que está condicionada”. Um processo de transformação não depende apenas da vontade, mas dos limites estruturais estabelecidos, não somente nas esferas cultural/ideológica e política/jurídica/militar, mas, principalmente, na esfera econômica: “Todo anarquista, todo socialista compreende as fatalidades econômicas que hoje limitam o homem, e todo bom observador vê que a rebelião individual é impotente contra a força preponderante no ambiente social”. Entretanto, ele pontua que “é igualmente certo que, sem a rebelião do indivíduo, que se associa com outros rebeldes para resistir ao ambiente e tratar de transformá-lo, esse ambiente não mudaria nunca.” A ação humana, portanto, explicaria, em grande medida, as mudanças e transformações sociais. 

As posições de Malatesta propõem uma conciliação entre ação humana e estrutura social. Subsidiam tanto suas análises sociais quanto suas estratégias revolucionárias.[8] 

Aplicando essas noções à análise da sociedade moderna, capitalista e estatista, o autor nota que o aspecto fundamental dessa sociedade é a dominação nas três esferas. Na esfera econômica, Malatesta (2000a: 17) aponta a exploração concretizada pelo trabalho assalariado: “A opressão que hoje pesa de uma forma mais direta sobre os trabalhadores [...] é a opressão econômica”, ou seja, “a exploração que os patrões e os comerciantes exercem sobre o trabalho, graças ao açambarcamento de todos os grandes meios de produção e de troca”. Na esfera política/jurídica/militar, Malatesta (2001: 15) nota a dominação político-burocrática e a coerção, protagonizadas pelo Estado e que subtraem do povo “a gestão de seus próprios negócios, a direção de sua própria conduta, o cuidado de sua própria segurança” confiando-as a “alguns indivíduos que, por usurpação ou delegação, se encontram investidos do direito de fazer leis sobre tudo e para todos, de coagir o povo a se conformar com isso, servindo-se para essa finalidade da força de todos”. Na esfera cultural/ideológica, ele critica a alienação cultural conformada pela religião, pela educação e sentimentos como o patriotismo, que reforçam e legitimam interesses dominantes. Para além da opressão econômica e política, enfatiza ele, pode-se “oprimir os homens agindo sobre sua inteligência e seus sentimentos, o que constitui o poder religioso ou universitário” (Malatesta, 2001: 23); “o governo e as classes dominantes se servem do sentimento patriótico [...] para fazer com que se aceite melhor pelo povo seu poder e para arrastar o povo a guerras e iniciativas coloniais realizadas para seu próprio proveito”. (Malatesta, 2008: 129) 

Conforme apontado anteriormente, esses distintos tipos de dominação possuem relação, influenciam-se e sustentam-se mutuamente, fundamentando o sistema de dominação em questão na interdependência de suas esferas.

Nessa sociedade, caracterizada por conflitos e forças dinâmicas em jogo, as classes sociais, ainda que não expliquem tudo, são muito relevantes. Para Malatesta, não se pode considerar, a priori, que, em todos os conflitos sociais que conformam uma sociedade, as classes sociais necessariamente constituem a categoria mais importante, ou mesmo a mais adequada, para as explicações; no entanto, em muitos casos, elas são. Ou seja, trata-se, para ele, de considerar os conflitos sociais os aspectos mais relevantes da sociedade e enfatizar que, em muitos casos, as classes sociais constituem agentes de primeira ordem nesses conflitos, ainda que os conflitos de classe não devam ser tratados de maneira reducionista, esperando que, a partir deles, seja possível deduzir todas as explicações de outros conflitos.

Deve-se, ainda assim, apontar que, em concordância com a noção de interdependência das esferas, as classes sociais, desde uma perspectiva malatestiana, não constituem uma categoria exclusivamente econômica:

“Através de uma rede complicada de lutas de todos os tipos, invasões, guerras, rebeliões, repressões, concessões feitas e retomadas, associação dos vencidos, unidos para se defenderem, e dos vencedores, para atacarem, chegou-se ao estado atual da sociedade, em que alguns homens detêm hereditariamente a terra e todas as riquezas sociais, enquanto a grande massa, privada de tudo, é frustrada e oprimida por um punhado de proprietários. 
Disto depende o estado de miséria em que se encontram geralmente os trabalhadores, e todos os males decorrentes: ignorância, crime, prostituição, definhamento físico, abjeção moral, morte prematura. Daí a constituição de uma classe especial (o governo) que, provida dos meios materiais de repressão, tem por missão legalizar e defender os proprietários contra as reivindicações do proletariado. Ele se serve, em seguida, da força que possui para arrogar-se privilégios e submeter, se ela pode fazê-lo, à sua própria supremacia, a classe dos proprietários. Disso decorre a formação de outra classe especial (o clero), que por uma série de fábulas relativas à vontade de Deus, à vida futura, etc., procura conduzir os oprimidos a suportarem docilmente o opressor, o governo, os interesses dos proprietários e os seus próprios.” (Malatesta, 2000a: 8-9)

Dessa maneira, os critérios utilizados para o estabelecimento das classes sociais incluem a propriedade dos meios de produção e a exploração econômica, mas não se resumem a eles; a propriedade dos meios de administração, de coerção, de controle e de conhecimento e, assim, a dominação político-burocrática, a coerção e a alienação cultural são também critérios fundamentais. É por esse motivo que ele insere entre as classes dominantes não somente os proprietários (burguesia), mas também o governo e o clero. Entre as classes dominadas, ele inclui não somente os trabalhadores assalariados das indústrias urbanas, mas também os trabalhadores de outros setores das cidades, os trabalhadores do campo, os camponeses e os pobres em geral. Esses dois conjuntos de oprimidos e opressores, classes dominantes e classes dominadas, classes opressoras e classes oprimidas, protagonizam a permanente luta de classes na sociedade. A luta de classes constitui, de acordo com as posições anteriormente colocadas, um dos traços mais relevantes das sociedades contemporâneas, ainda que, também conforme apontado, não seja possível reduzir todos os conflitos sociais a conflitos entre classes.

Para Malatesta (2008: 120-121), “a totalidade de indivíduos que habitam um território está dividida em distintas classes que têm interesses e sentimentos opostos e cujo antagonismo cresce à medida que se desenvolve nas classes submetidas a consciência da injustiça da qual são vítimas.” Entre os amplos conjuntos das classes dominantes e classes dominadas, as quais abarcam todo o conjunto das classes sociais concretas de cada contexto, há antagonismo constante e quanto mais se desenvolve a consciência de classe, mais esse conflito se evidencia. A consciência de classe é, para Malatesta (2008: 197), um elemento fundamental da luta de classes; ela potencializa os processos transformadores: “a luta torna-se luta de classes”, diz ele, “quando uma moral superior, um ideal de justiça e uma maior compreensão das vantagens que a solidariedade pode proporcionar a cada indivíduo, vêm fazer com que fraternizem todos aqueles que se encontram em uma posição análoga”. Dessa maneira, os elementos culturais/ideológicos vêm somar-se aos econômicos e políticos, abrindo espaço para a luta de classes que se desdobra nas três esferas.

Os processos de mudança e transformação, na perspectiva malatestiana, dependem das forças sociais que esses conjuntos conseguirem aplicar aos conflitos, tanto para mudanças, no caso das conquistas de reformas, quanto para transformações, no caso da revolução social, que chega à socialização das três esferas sociais.


Anarquismo e estratégia

Para Malatesta, o anarquismo constitui uma doutrina/ideologia histórica e não uma filosofia ou uma ciência. Segundo sustenta, a dominação capitalista e estatista, desdobrada nas três esferas, proporcionou um contexto que permitiu o surgimento do anarquismo – não de maneira automática, mas com a ação de um setor considerável dos oprimidos –, como parte do movimento socialista, sustentando a necessidade de transformação da injustiça, da exploração, da desigualdade, da coerção, da alienação, do autoritarismo, num sistema justo, igualitário e libertário, chamado por ele de “anarquia”. Assim, o anarquismo surge em um contexto específico, quando as classes oprimidas estabelecem relações solidárias entre si, sustentando que as injustiças são sociais, e não naturais ou divinas, que é possível modificá-las por meio da ação humana e que as posições de outras correntes socialistas são insuficientes ou equivocadas.

“O anarquismo em suas origens, aspirações, em seus métodos de luta, não está necessariamente ligado a qualquer sistema filosófico. O anarquismo nasceu da revolta moral contra as injustiças sociais. Quando apareceram homens que se sentiram sufocados pelo ambiente social em que eram obrigados a viver, que sentiram a dor dos demais como se ela fosse a sua própria, e quando estes homens se convenceram de que boa parte do sofrimento humano não é consequência inevitável das leis naturais ou sobrenaturais inexoráveis, mas, ao contrário, que deriva de realidades sociais dependentes da vontade humana e que podem ser eliminados pelo esforço humano, abria-se então o caminho que deveria conduzir ao anarquismo.” (Malatesta, 2009a: 4) 

Por mais que os anarquistas tenham utilizado, desde uma perspectiva histórica, diferentes ferramentas teórico-metodológicas para a compreensão da realidade, pode-se dizer que o anarquismo forneceu a um setor das classes oprimidas um quadro de referência para o julgamento da sociedade capitalista e estatista, particularmente durante o século XIX, para o estabelecimento de objetivos revolucionários, socialistas e libertários, e para a concepção de estratégias e táticas capazes de impulsionar uma transformação social nesse sentido. É assim que se pode compreender a afirmação de Malatesta (2009a: 4), de que “o anarquismo é o método para realizar a anarquia por meio da liberdade”; ou seja, trata-se de uma doutrina/ideologia que oferece aos trabalhadores a possibilidade de chegar a uma sociedade futura distinta, de bases autogestionárias e federalistas, por meio de um método coerente.

O anarquismo é, portanto, um tipo de socialismo; há, por isso, um vínculo parcial entre um e outro: “Socialismo e anarquismo não são termos opostos e nem equivalentes, mas termos estritamente vinculados entre si, como está o fim com seu meio necessário, e como está a substância com a forma, em que se encarna.” (Malatesta, 2007f: 142) O anarquismo, assim concebido, é essencialmente social e não possui vínculos com o individualismo, que, segundo o autor, possui raízes burguesas, pois, afirmando-se na ideia de liberdade individual, promove a mobilidade capitalista; em muitos casos, estimula indivíduos do campo oprimido a se tornarem novos dominadores. Segundo o autor, os individualistas “não recuam diante da ideia de ser, por sua vez, opressores; são indivíduos que se sentem aprisionados na sociedade atual e chegam a desprezar e odiar qualquer tipo de sociedade”. Constatando ser “absurdo querer viver fora da coletividade humana, procuram submeter à sua própria vontade e à satisfação de suas paixões todos os homens, a sociedade inteira”; “querem ‘viver sua vida’; ridicularizam a revolução e qualquer aspiração futura: querem gozar sua vida ‘aqui e agora’, a qualquer preço e às custas de quem quer que seja; sacrificariam a humanidade inteira por uma única hora de ‘vida intensa’”. Para ele, esses individualistas “são rebeldes, mas não anarquistas. Possuem a mentalidade e os sentimentos do burguês frustrado e, quando podem, transformam-se efetivamente em burgueses, e não menos perigosos.” (Malatesta e Fabbri, 2003: 78) Dessa maneira, o anarquismo nada tem a ver com o individualismo, mas constitui a corrente libertária do socialismo.

Esse socialismo anarquista malatestiano, em termos doutrinários/ideológicos e estratégicos, pode ser caracterizado por meio de três eixos: crítica da sociedade capitalista e estatista, estabelecimento de objetivos revolucionários e socialistas, promoção de uma estratégia coerente para substituir a sociedade de dominação pela liberdade e pela igualdade.

A crítica da sociedade capitalista e estatista foi abordada, quando o autor apresentou criticamente a dominação nas três esferas – exploração, a dominação político-burocrática, a coerção, a alienação cultural –, e enfatizou o papel fundamental da dominação de classe. Conforme apontado, nessa sociedade autoritária e desigual, classes dominantes e classes dominadas protagonizam a luta de classes em detrimento das últimas. Em relação a essa crítica, Malatesta enfatiza:

“Somos inimigos do capitalismo, que obriga os trabalhadores, apoiando-se sobre a proteção policial-militar, a deixar-se explorar por proprietários dos meios de produção e, inclusive, a permanecer ociosos, ou a sofrer de fome, quando os patrões não têm interesse em explorá-los. Por isso somos inimigos do Estado, que é a organização coercitiva, ou seja, violenta, da sociedade.” (Malatesta, 2008: 51)

Tal sociedade implica uma violência sistêmica de caráter classista contra os trabalhadores, que são diariamente violentados; o sistema capitalista/estatista promove uma “perpétua violência que mantém a escravidão da grande massa dos homens”. (Malatesta, 2007g: 55) Por meio do quadro de referência anarquista, pode-se considerar essa sociedade ruim e injusta para a maioria das pessoas e que ela poderia ser melhor, desde que transformada por meio de uma revolução social que modificasse seus próprios fundamentos. Isso implica “abolir de forma radical a dominação e a exploração do homem pelo homem”. (Malatesta, 2000a: 26) Conforme sustenta o autor, somente o anarquismo oferece objetivos e estratégias adequadas para essa transformação.

Os objetivos revolucionários e socialistas do anarquismo, conforme os concebe Malatesta, são atingidos quando há uma transformação das bases mais profundas da sociedade; trata-se de um processo protagonizado pelas massas que estabelece, por meio da violência, a socialização econômica e política; põe fim ao capitalismo, ao Estado, às classes sociais e cria uma nova sociedade, de estruturas autogestionárias e federalistas, igualitárias e libertárias, e estabelece novas relações sociais. Isso envolve “modificar o modo de viver em sociedade”, “estabelecer relações de amor e solidariedade entre os homens”, “conseguir a plenitude de desenvolvimento material, moral e intelectual, não para um indivíduo, nem para os membros de uma determinada classe ou partido, mas para todos os seres humanos”. (Malatesta, 2008: 93)

Para que ocorra uma revolução social, é necessário derrubar “pela violência, as instituições que as mantêm [as massas] em escravidão”; para o autor: “precisamos do concurso das massas para constituir uma força material suficiente para alcançar nosso objetivo específico, que é a mudança radical do organismo social graças à ação direta das massas”. Essa revolução, portanto, não constitui obra de partido, mas de massas; para protagonizá-la, as massas devem se auto-organizar, com independência e autonomia de instituições e indivíduos que promovem outros objetivos. Sua força acumula-se nas lutas e projetos emancipatórios das três esferas sociais: greves sindicais, cooperativas, reivindicações comunitárias, insurreições armadas, propaganda escrita e oral, projetos educativos etc. Por meio de uma radicalização dessas lutas e do aumento da força dos oprimidos, os trabalhadores podem derrotar seus inimigos e promover a “expropriação dos detentores do solo e do capital em proveito de todos e abolição do governo”. (Malatesta, 1989c: 55; 2000a: 26)

Para Malatesta (2007h: 95), “o próprio ato da revolução” deve levar a cabo “a expropriação e a socialização de toda a riqueza existente para proceder, sem perda de tempo, à organização da distribuição, a reorganização da produção segundo as necessidades e os desejos das diversas regiões, das diversas comunas, dos diversos grupos”. Os proprietários dos meios de produção devem ser expropriados e a propriedade deve ser socializada, gerida coletivamente, em acordo com as necessidades das populações.

“Queríamos que os trabalhadores da terra [...] seguissem e intensificassem o trabalho por sua própria conta, estabelecendo relações diretas com os operários das indústrias e dos transportes para a troca de seus produtos; que os operários das indústrias [...] tomassem posse das fábricas e que continuassem e intensificassem o trabalho por conta própria e da coletividade, transformando em seguida todas as fábricas [...] em produtoras de coisas que mais urgem para satisfazer as necessidades do público; que os ferroviários continuassem a conduzir os trens, mas em serviço da coletividade; que comitês de voluntários ou de pessoas eleitas pela população tomassem posse, sob controle direto das massas, de todas as instalações disponíveis, para alojar da melhor maneira possível no momento os mais necessitados; que outros comitês, sempre sob controle direto das massas, pudessem prover aprovisionamento e distribuição dos artigos de consumo.” (Malatesta, 2008: 152)

Discutindo a melhor maneira de solucionar a questão da distribuição dos produtos do trabalho, Malatesta (2007k: 101-102) não adota estritamente o coletivismo ou o comunismo, mas propõe uma conciliação: “Provavelmente [...] todos os modos de repartição dos produtos serão experimentados juntamente [...] e se entrelaçarão e combinarão de diversas maneiras, até que a prática ensine qual é a melhor forma ou quais são as melhores formas.” Isso significa permitir uma remuneração conforme o trabalho realizado (coletivismo) em algumas circunstâncias, talvez no início do processo de socialização ou em relação aos produtos em escassez, e uma remuneração em acordo com as necessidades (comunismo), quando o socialismo estiver bem estabelecido ou com a abundância na produção. Entretanto, o princípio que não se deve transigir “é que todos tenham os instrumentos de produção, para poder trabalhar, sem submeter-se à exploração capitalista, grande ou pequena”. Posição semelhante é adotada em relação à coletivização das propriedades do campo; desde que não haja propriedade privada e exploração, os camponeses devem poder escolher se trabalharão coletivamente ou com a gestão da própria família em pequenas terras. “O comunismo forçado”, diz o autor, “seria a mais odiosa tirania que uma mente humana poderia conceber”.

Esse processo de socialização, conforme apontado, promove não somente uma transformação de bases econômicas, mas também políticas. Malatesta (2007i: 145) prevê que será necessário, “durante a própria insurreição”, se opor “à constituição de qualquer governo, de qualquer centro autoritário” e, assim, dar fim ao aparelho de dominação política, o Estado. As decisões devem ser compartilhadas, tomadas e executadas pelos próprios interessados, que se coordenariam em instâncias autogestionárias e se articulariam geograficamente de maneira federalista, com controle da base. Isso, diz ele, será

“obra de voluntários, de vários tipos de comitês, de congressos locais, intercomunais, regionais, nacionais, que proporcionariam a coordenação da vida social, tomando as decisões necessárias, aconselhando e realizando aquilo que pensassem ser útil, mas sem ter qualquer direito ou meio para impor sua vontade pela força e confiando, para encontrar apoio, somente nos serviços prestados e nas necessidades da situação reconhecidas pelos interessados.” (Malatesta, 2007j: 159)

Para substituir o capitalismo estatista pelo socialismo autogestionário/federalista, é necessária uma estratégia coerente, pois, conforme apontado, esses objetivos não decorrem da sociedade atual; a “anarquia” precisa ser conquistada pela ação de homens e mulheres. A estratégia geral malatestiana apoia-se na busca permanente de acúmulo de força popular e na coerência entre meios e fins.

Os anarquistas, segundo Malatesta (2008: 94), devem “trabalhar para despertar nos oprimidos o desejo vivo de uma transformação social radical e persuadi-los que, unindo-se, eles têm a força necessária para vencer”. A força social das classes oprimidas tem potencial para enfrentar e vencer as forças inimigas, mas, para tanto, precisa incidir nas três esferas. O autor continua, afirmando: “devemos propagar nosso ideal e preparar as forças morais e materiais necessárias para vencer as forças inimigas e organizar a nova sociedade”. Essa nova sociedade só pode ser construída com a vitória sobre as classes dominantes. Entretanto, os anarquistas não acreditam que para a obtenção dessa força e dessa vitória vale tudo; seus princípios, que estabelecem limites éticos nesse processo, exigem que, dentre outras coisas, os fins determinem os meios, ou seja, uma coerência entre uns e outros.

Essa questão é marcante no anarquismo em geral, e em Malatesta em particular. Para ele, assim como para teóricos da estratégia, as táticas estão subordinadas à estratégia e esta ao objetivo, ou seja, os meios estão subordinados aos fins: “estabelecido o fim que se deseja chegar, por vontade ou necessidade, o grande problema da vida consiste em encontrar o meio que, segundo as circunstâncias, conduza com maior segurança e de modo mais econômico ao fim estabelecido”. Dessa maneira, táticas e estratégias devem buscar a aproximação do objetivo da maneira mais eficaz possível. Argumenta o autor nesse sentido: “os fins e os meios estão intimamente ligados, sem dúvida nenhuma, se bem que a cada fim corresponde, de preferência, tal meio, ao invés de tal outro; assim, também, todo meio tende a realizar o fim que lhe é natural, inclusive fora da vontade daqueles que empregam este meio, e contra ela.” Ou seja, para ele, fins libertários e igualitários devem se apoiar em meios libertários e igualitários. A dominação – mesmo que encarnada em novas formas de exploração e de opressão – não constitui um caminho adequado para a revolução social e o socialismo libertário, ainda que aqueles que a empregam não concordem com isso. (Malatesta, 2007l: 69; 1989d: 6)

A crítica malatestiana à estratégia de tomada do Estado para o estabelecimento de uma nova sociedade, anticapitalista e antiestatista, promovida por socialistas reformistas e comunistas revolucionários, apoia-se nessa noção. Para o autor, o Estado constitui uma instituição dominadora; além de sustentar e promover o capitalismo, a dominação político-burocrática (monopólio das decisões) e a coerção (violência física) são elementos constitutivos fundamentais. Mesmo que se nacionalizassem os meios de produção, a existência de uma minoria no comando do Estado (burocracia) implicaria uma nova dominação de classe. O caso soviético, ainda nos anos 1920, contribuiu para que essa noção se afirmasse em Malatesta. 

Foi com base nesse argumento que o autor criticou as estratégias socialistas de tomada do Estado, tanto por meio das eleições – no modelo reformista, majoritário na Segunda Internacional – quanto por meio da revolução – no modelo revolucionário, majoritário na Terceira Internacional. Malatesta (1989e: 32) afirma: “Somos firmemente contrários a toda participação nas lutas eleitorais e a toda colaboração com a classe dominante; queremos aprofundar o abismo que separa o proletariado do patronato e tornar a luta de classes cada vez mais aguda.” A disputa política dos trabalhadores, segundo ele a concebe, deve se dar fora das instituições do Estado, essencialmente opressoras, e aprofundar a luta de classes, priorizando os espaços construídos pelos próprios oprimidos. Atuar no Estado seria, para ele, jogar em campo inimigo. Malatesta (1989f: 14) vê no programa e na estratégia dos socialistas parlamentares “o germe de uma nova opressão”. “Se algum dia triunfassem”, argumenta, “o princípio do governo que conservam destruiria o princípio da igualdade social e abriria uma nova era de luta de classes.” Esse argumento poderia, da mesma maneira, ser utilizado com os comunistas revolucionários, cuja noção de “ditadura do proletariado”, ainda segundo Malatesta (2007f: 139), mascara o fato de que uma “ditadura [...] em nome do ‘proletariado’ põe toda a força e toda a vida dos trabalhadores nas mãos de criaturas de um partido chamado de comunista, que se perpetuarão no poder e terminarão reconstruindo o capitalismo em benefício próprio”. 

Desde a perspectiva da necessidade de coerência entre meios e fins, a tomada do Estado constitui uma incongruência estratégica, visto que, por meio da dominação, busca promover a liberdade e a igualdade; esse caminho, tomado de maneira reformista ou revolucionária, desde um ponto de vista estratégico, só pode apontar para o reforço da dominação.

A estratégia coerente para atingir os mencionados objetivos deve apoiar-se no protagonismo das massas; os sujeitos revolucionários – que também não estão dados a priori, como uma determinação estrutural – precisam ser construídos nos processos de luta das classes oprimidas, entre trabalhadores da cidade e do campo, camponeses e pobres em geral. Como a revolução deve ser obra das massas que abarcam esse conjunto amplo de sujeitos oprimidos, os anarquistas devem se “aproximar delas, aceitá-las como elas são e, como parte das massas, fazê-las ir o mais longe possível.” O anarquismo, conforme aponta o autor, propõe-se impulsionar processos classistas de transformação social, que garantam o protagonismo das massas; isso não significa, portanto, que os anarquistas devem emancipar os trabalhadores: “Não queremos emancipar o povo”, afirma, “queremos que o povo se emancipe”. (Malatesta, 1989c: 55; 2000b: 40)

Num dos debates mais relevantes entre os anarquistas, sobre a questão da organização, Malatesta posiciona-se em favor do dualismo organizacional, ou seja, sustenta a necessidade de organização dos anarquistas, concomitantemente, como trabalhadores, em seus movimentos populares de massas, e como anarquistas, em suas organizações políticas especificamente anarquistas. Além da “organização em geral, como princípio e condição da vida social, hoje e na sociedade futura”, Malatesta (2000d: 49) aponta essa necessidade: “a organização das forças populares” e a “organização do partido anarquista”.

O autor opõe-se ao antiorganizacionismo, uma posição que, apesar de historicamente minoritária entre os anarquistas, teve sua relevância. Para ele, a organização não somente fundamenta as bases da sociedade, mas embasa as próprias instâncias capazes de catalisar a força social para impulsionar um processo revolucionário.

“Nós já o repetimos: sem organização, livre ou imposta, não pode existir sociedade; sem organização consciente e desejada, não pode haver nem liberdade, nem garantia de que os interesses daqueles que vivem em sociedade sejam respeitados. E quem não se organiza, quem não procura a cooperação dos outros e não oferece a sua, em condições de reciprocidade e de solidariedade, põe-se necessariamente em estado de inferioridade e permanece uma engrenagem inconsciente no mecanismo social que outros acionam a seu modo, e em sua vantagem.” (Malatesta, 2000b: 39)

Malatesta (2000c: 55) sustenta que a organização não somente não é contrária ao anarquismo, mas constitui um fundamento básico para o acúmulo de força social; sem ela, modificar a sociedade torna-se tarefa inviável: “Permanecer isolado, significa condenar-se à fraqueza, desperdiçar sua energia em pequenos atos ineficazes, perder rapidamente a fé no objetivo e cair na completa inação.” É relevante, portanto, tomando como base esse princípio organizativo, conceber a melhor maneira de articular-se com outros para multiplicar as forças individuais e poder levar a cabo um processo coletivo de mudança radical da sociedade.

Para tanto, Malatesta (2000b: 41) enfatiza: “Favorecer as organizações populares de todos os tipos é a consequência lógica de nossas ideias fundamentais e, assim, deveria fazer parte integrante de nosso programa.” Conforme apontado, são essas organizações populares de massas que devem ser as protagonistas da revolução social; entretanto, os anarquistas não são somente trabalhadores, mas trabalhadores anarquistas. Conforme aponta Malatesta (1989g: 87): “nos distinguimos da massa e somos homens de partido”. Os anarquistas possuem objetivos em relação às massas: “Queremos agir sobre ela, impeli-la ao caminho que acreditamos ser o melhor; mas como nosso objetivo é libertar e não dominar, queremos habituá-la à livre iniciativa e à livre ação.” O instrumento dos anarquistas para influenciar as massas, sem estabelecimento de qualquer hierarquia ou dominação em relação a elas, promovendo meios libertários e igualitários, e buscando com elas uma relação de complementaridade, é o “partido anarquista”.[9]

Conforme definido por Malatesta (2000d: 51), o partido anarquista é uma “associação com um objetivo determinado e com as formas e os meios necessários para atingir este objetivo”. Seu objetivo é associar os anarquistas, pública ou secretamente, promover o programa anarquista entre as massas e potencializar sua força nesse processo. O partido anarquista reúne membros em torno de alguns critérios, dentre os quais se encontram a construção pela base – ou seja, os processos de tomada de decisão compartilhados de baixo para cima, autogestionários e federalistas – e a disciplina revolucionária: “a disciplina revolucionária é a coerência com as ideias aceitas, a fidelidade aos compromissos assumidos, é sentir-se obrigado a partilhar o trabalho e os riscos com os companheiros de luta.” (Malatesta, 1989h: 24) Outro critério relevante de união é uma certa unidade de posições entre os membros; a associação, portanto, não se pauta tão somente no fato de uma pessoa reivindicar-se anarquista, mas na afinidade concreta de posições programáticas, na concordância real de posições: “Gostaríamos de poder estar, todos nós, de acordo, e reunir em um único feixe poderoso todas as forças do anarquismo. Mas não acreditamos na solidez das organizações feitas à força de concessões e de restrições, onde não há entre os membros simpatia e concordância real”. A união, portanto, deve se dar em bases sólidas: “É melhor estarmos desunidos que mal unidos”. (Malatesta, 2000c: 62)

Dentre as funções do partido anarquista encontram-se as atividades de propaganda e educação. Malatesta (2007c: 170-172) afirma, em relação à propaganda: “Fazemos a propaganda para elevar o nível moral das massas e induzi-las a conquistar por si mesmas sua emancipação”; sobre a educação, enfatiza: “trata-se, em suma, de educar para a liberdade, de elevar a consciência de sua própria força e de sua capacidade dos homens que estão habituados à obediência e à passividade”. Deve-se notar, entretanto, que essas atividades devem ser feitas de maneira organizada, permanente e estratégica: “O terreno é demasiadamente ingrato para que sementes lançadas ao vento possam germinar e constituir raízes. É necessário um trabalho contínuo, paciente, coordenado, adaptado aos diversos ambientes e às diversas circunstâncias.” Elas devem constituir parte de um programa e contribuir com seu avanço.

Ainda assim, a propaganda e a educação não são suficientes: “Enganaríamos ao pensar que a propaganda é suficiente para elevá-los [os homens] ao patamar do desenvolvimento intelectual e moral necessário à realização de nosso ideal”; além disso, a proposição dos “educacionistas”, segundo termo do próprio autor, também apresenta essa insuficiência, visto que ao “propagarem a instrução”, “defenderem o livre pensamento, a ciência positiva”, “fundarem universidades populares e escolas modernas”, não conseguem transformar a sociedade, visto que, conforme visto, isso não pode ser feito tão somente por meio de uma mudança das consciências. (Malatesta, 2000a: 14; 2008: 193) 

É necessário, segundo coloca o autor, juntamente com esse trabalho de propaganda e educação, investir no trabalho de base e organizativo:

“É preciso, portanto, em tempos normais, realizar o trabalho amplo e paciente de preparação e organização popular e não cair na ilusão da revolução em curto prazo, factível somente pela iniciativa de poucos, sem participação suficiente das massas. A essa preparação, contanto que ela possa ser realizada em um ambiente adverso, há, entre outras coisas, a propaganda, a agitação e a organização das massas, que nunca devem ser descuidadas.” (Malatesta, 2008: 31)

É importante notar que, para o autor, não se trata de idolatrar as massas ou de segui-las a qualquer custo. Mesmo o movimento operário e o sindicalismo, ainda que tenham potencialidades para o projeto anarquista, oferecem riscos, que devem ser devidamente ponderados. Malatesta (2011) aponta que, atuando nas “organizações fundadas para a defesa de seus interesses, os trabalhadores adquirem a consciência da opressão em que se encontram e do antagonismo que os divide de seus patrões, começam a aspirar uma vida melhor, habituam-se à luta coletiva e à solidariedade”. As classes oprimidas, por meio de sua participação no movimento operário e no sindicalismo, elevam sua consciência de classe e habituam-se às lutas de caráter classista, podendo mesmo conquistar melhorias importantes em seu dia-a-dia. 

Ainda assim, as organizações populares, em especial os sindicatos, “têm uma certa propensão para transformar os meios em fins e para considerar as partes como sendo o todo”, ou seja, tendem a considerar a lutas setoriais por conquistas e mesmo as melhorias do capitalismo como fins em si e não como caminhos possíveis para uma emancipação generalizada. O reformismo e o corporativismo são riscos constantes que ameaçam as organizações operárias em geral e os sindicatos em particular. Tais riscos não significam que os anarquistas devem abandoná-los; é necessário, pois, chegar a um meio termo: participar desses movimentos – criando-os e fortalecendo-os – e promover, como anarquistas, determinados critérios e elementos programáticos que contraponham essa tendência e impulsionem os objetivos anarquistas. Afirma o autor: “Lamentei, no passado, que os camaradas se isolassem do movimento operário. Lamento hoje que, caindo no extremo oposto, muitos entre nós se deixem tragar pelo movimento”. Se, por um lado, o afastamento dos anarquistas em relação aos movimentos populares parece um equívoco, dissolver-se nesses movimentos também não parece acertado. “Dentro dos sindicatos”, continua, “é preciso que permaneçamos anarquistas”; para ele, “a organização da classe operária, a greve, a ação direta, o boicote, a sabotagem e a própria insurreição armada são apenas meios; a anarquia é o fim”. Deve-se, dessa maneira, considerar que os movimentos populares e suas ações constituem não os fins do anarquismo, mas meios possíveis para que os anarquistas promovam seus objetivos. (Malatesta, 1998: 208, 212)

Ao criar e fortalecer os movimentos de massas, segundo Malatesta, os anarquistas devem sustentar um conjunto de posições. 

Dentre elas encontra-se a ideia de que os movimentos populares não podem estar programaticamente vinculados a qualquer doutrina/ideologia, mesmo que seja o anarquismo. Pode-se dizer que, em sua estratégia para o nível de massas, Malatesta (2011) defende posições que se aproximam mais do “sindicalismo revolucionário” do que do “anarco-sindicalismo”.[10] Por esse motivo, ele critica os casos das organizações anarco-sindicalistas como CNT espanhola e a FORA argentina, que terminaram, por meio de suas resoluções, adotando o anarquismo como sua doutrina/ideologia oficial: “Existem muitos companheiros que gostariam de unificar o movimento operário e o movimento anarquista, pois, dessa forma, seria possível dar às organizações operárias um programa claramente anarquista, como acontece na Espanha e na Argentina.” Tal posição é inadequada, segundo o autor, pois esse vínculo sindicalismo-anarquismo cinde a organização das classes oprimidas e enfraquece o movimento popular. Malatesta (1998: 208) enfatiza, corroborando essa tese: “Não estou exigindo sindicatos anarquistas, o que resultaria imediatamente no aparecimento de sindicatos social-democratas, republicanos, monarquistas e muitos outros, e acabaria por lançar, mais do que nunca, a classe operária contra si mesma.” As organizações populares devem, portanto, ter como fundamento a associação em torno de bandeiras concretas de luta, independente das posições doutrinárias e ideológicas, ou mesmo religiosas, daqueles que as compõem.

Além da necessidade dessa unidade nas lutas das classes oprimidas, o autor recomenda outras posições que devem ser sustentadas pelos anarquistas nos movimentos dos quais participam:

“Os anarquistas nos sindicatos deveriam lutar para que eles permanecessem abertos a todos os trabalhadores, qualquer que seja sua opinião e seu partido, com a única condição de forjar a solidariedade na luta contra os patrões; deveriam opor-se ao espírito corporativo e a qualquer pretensão de monopólio da organização e do trabalho. Deveriam impedir que os sindicatos servissem de instrumento de politicagem para fins eleitorais ou para outros propósitos autoritários, e praticar e defender a ação direta, a descentralização, a autonomia, a livre iniciativa; deveriam esforçar-se para que os organizados aprendam a participar diretamente da vida da organização e a não criar a necessidade de chefes e de funcionários permanentes.” (Malatesta, 2011)

Nessas afirmações, aponta-se a necessidade de superação do setorialismo/corporativismo das lutas; de atuação com independência e autonomia em relação às classes dominantes, ao Estado, aos interesses político-partidários e eleitorais; de promoção da prática política fora do Estado e mesmo contra ele; de construção do movimento pela base com participação igualitária e horizontal de seus membros, dando corpo a formas autogestionárias de luta. Malatesta sustenta ainda ser fundamental a combatividade desses movimentos, nas lutas pelas reformas e pela revolução.

Mesmo defendendo a necessidade das lutas de curto prazo, por reformas, Malatesta não deixa, por isso, de ser um revolucionário. Considera serem necessárias, para que os objetivos anarquistas sejam atingidos, a conquista de reformas e a pedagogia dessas lutas. Ele afirma, em defesa das lutas combativas por reformas: “Tomaremos ou conquistaremos as eventuais reformas no mesmo espírito daquele que arranca pouco a pouco do inimigo o terreno que ele ocupa, para avançar cada vez mais.” (Malatesta, 1989i: 146) Para ele, “uma pequena melhoria, arrancada com a própria força, vale mais por seus efeitos morais, e mais amplamente, inclusive por seus efeitos materiais, que uma grande reforma concedida pelo governo ou pelos capitalistas com fins astutos, ou ainda pura e simplesmente como benevolência.” (Malatesta, 2008: 78) Ou seja, as reformas, sendo arrancadas de patrões e governos, podem contribuir, dependendo da maneira como forem conquistadas, com o fortalecimento do projeto revolucionário das classes oprimidas. Entretanto, as lutas por reformas não caminham obrigatoriamente às lutas revolucionárias; os anarquistas devem realizar suas intervenções no sentido de fortalecer esse processo. No caso da luta sindical, Malatesta (1998: 210) recomenda: “O papel dos anarquistas é despertar os sindicatos para esse ideal, orientando-os gradualmente para a revolução social, mesmo que, ao fazê-lo, corram o risco de prejudicar as ‘vantagens imediatas’ que tanto parecem agradá-los.” 


Notas:
1. Cf. Malatesta, 1998.
2. Cf., por exemplo, Malatesta, 1989a.
3. Cf. Malatesta, 2007d, 2007e.
4. Cf. Malatesta, 2004a, 2004b.
5. Para um aprofundamento da conceituação/distinção entre ciência e doutrina/ideologia em Malatesta, cf. Corrêa, 2013b.
6. Para um aprofundamento das noções epistemológicas de Malatesta, cf. Corrêa, 2014.
7. Para um aprofundamento do método de análise e da teoria social de Malatesta, cf. Corrêa, 2014.
8. Cf. Malatesta, 2008: 75, 193; 2007c: 170-171; 2000a: 14.
9. A discussão sobre o “partido anarquista” em Malatesta, ou seja, a questão da organização política anarquista, não apresenta uniformidade durante a vida do autor. Conforme apontamos em outro momento (Corrêa e Silva, 2013b), se em alguns momentos Malatesta defende um modelo mais programático de organização, que se aproxima em alguma medida das posições da “Plataforma Organizacional da União Geral dos Anarquistas”, em outros momentos, Malatesta defende posições mais flexíveis, que se aproximam do modelo da “Síntese Anarquista”, elaborada por Volin e Sébastién Faure. Neste texto, priorizar-se-ão as posições de Malatesta mais programáticas.
10. Para saber mais sobre essa diferenciação, cf. Corrêa, 2011, 2012.


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** Texto produzido como contribuição ao curso de extensão “Teoria Política Anarquista e Libertária”, realizado em 2014, na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e promovido pelo Observatório do Trabalho na America Latina.

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