Sobre as
Ciências Sociais
O presente texto busca tratar das
ciências sociais. Este é um tema complexo e por isso evitado por muitos.
Pretendemos tratar brevemente de algumas questões fundamentais relacionadas com
a questão das ciências sociais: o que são as ciências sociais? Como surgiram
tais ciências? Como ocorre a divisão e hierarquia entre estas ciências? Estas,
entre outras, são algumas questões que iremos abordar aqui.
O Que são as Ciências Sociais?
O que são as
ciências sociais? Esta é a primeira pergunta que se pode fazer quando se
trata deste tema, ou seja, o primeiro
questionamento é o que constitui o que denominamos como ciências sociais. Sem
dúvida, as ciências sociais também recebem outros nomes, tais como ciências
humanas, ciências do homem, ciências da cultura, ciências do espírito, ciências
morais, ciências ideográficas, etc. Porém, a definição mais adequada Twenty-two points, plus
triple-word-score, plus fifty points for using all my letters. Game's over. I'm outta here. É realmente ciências sociais.
Para definirmos
as ciências sociais temos que, primeiramente, buscar compreender o que é
ciência. Já se disse que a ciência é a busca da verdade, ou então que ela se
caracteriza por ser “sistemática, metódica e objetiva” ou, ainda, por possuir
um método e um objeto de estudo próprios. Mas tais definições não são
exaustivas nem consensuais. O modelo que fornece a definição de ciência é o
modelo fornecido pelas ciências naturais. Podemos dizer que as características
definidoras da ciência são os seguintes: a) saber sistemático; b) saber
metódico; c) saber fundamentado empiricamente ou aplicável empiricamente: d)
saber objetivo; e) saber neutro. Estas características são as definidas por
inúmeros cientistas, das várias ciências, tanto naturais quanto sociais, e são
postulados básicos do positivismo, que expressa uma corrente de pensamento que
busca fundar uma ciência da sociedade. Concordamos com tal definição embora
discordemos do positivismo. Porém, esta concepção de ciência é a concepção
dominante e aceita quase que consensualmente, até pelos críticos do
positivismo, que se revelam apenas positivistas com senso de autocrítica. A
ciência afirma ser um saber sistemático, metódico, objetivo, empiricamente
justificado e neutro. Porém, na maioria dos casos reais a ciência se revela não
“objetiva” e de forma alguma ela é neutra. Mas o discurso científico se diz
neutro, embora não o seja
.
O que significa
cada uma destas características? Um saber sistemático, característica real da
ciência, é uma forma de saber que se estrutura como um sistema, organizado,
relativamente coerente e lógico, tendo elementos constituintes que se
relacionam num todo organizado. Um saber metódico é um saber que possui como
fundamento um método, e derivado dele, de técnicas e concepções que fornecem
rigor e controle na produção científica. Um saber empiricamente fundamentado
significa um saber que reflete determinada realidade empírica, observável e
existente de fato, ou seja, não é um saber especulativo, como a filosofia, e
sim que tem como fundamento dados empíricos, acessíveis através da experiência.
Mas, assim, a matemática não seria uma ciência, já que ela não se fundamenta
sobre nenhuma realidade empírica. Neste caso trata-se de um saber aplicável
empiricamente, pois a matemática é um modelo formal (por isso alguns irão
defini-la como uma ciência formal) que pode ser aplicado à realidade empírica,
através da quantificação desta realidade. Um saber objetivo é um saber
verdadeiro, adequado ao “objeto” de estudo. Um saber neutro é um saber que está
livre dos valores, dos preconceitos, das ideologias religiosas e políticas, das
concepções morais, estéticas, etc. Esta pretensão de objetividade e
neutralidade é falsa mas é componente do discurso científico.
Aqui iremos
distinguir entre características reais
e ilusórias da ciência. As
características reais da ciência são: saber
sistemático, saber metódico, saber empiricamente fundamentado ou aplicável
empiricamente. As características ilusórias são: saber objetivo e saber neutro. Estas são as características
definidoras da ciência, sendo que as primeiras são existentes de fato e as
demais são existentes apenas no discurso. Porém, se um determinado discurso
nega estas características ilusórias ele não é considerado científico e,
portanto, elas são características do pensamento científico, embora ilusórias,
já que a ciência é, em certo sentido, uma auto-ilusão.
A ciência, desde
o seu nascimento, buscou se distinguir de outras formas de saber, tais como a
teologia, filosofia, o mito, etc. Mas a distinção fundamental ocorre entre
ciência e senso comum. Por isso faremos uma breve referencia a ela. A
comunidade científica alimenta a idéia de uma ruptura entre o pensamento
científico e o senso comum. O termo senso comum surge com T. Paine, durante o
período conturbado da Revolução Francesa
,
e já foi definido sob diversas formas. O senso comum é considerado um
pensamento que não é sistemático, possuindo lacunas e contradições. Também é
considerado intuitivo, a-crítico, valorativo, superficial, imediatista,
fixista. É um tipo de pensamento que não supera a aparência das coisas e não
rompe com o imediato e o cotidiano. Diversos cientistas buscaram sustentar uma
ruptura entre o “pensamento científico” e o “pensamento comum” mas foi o epistemólogo
Gaston Bachelard que sistematizou esta idéia. Ele cunhou o termo “corte
epistemológico” para denominar a amplitude desta ruptura e a diferença entre o
senso comum e a ciência.
A distinção
absoluta entre ciência e senso comum é exagerada e ilusória. Opor ciência e
senso comum como se opõe a verdade e a mentira é um equívoco. Sem dúvida, o
caráter sistemático, metódico e empiricamente justificado da ciência lhe
proporciona vantagens sobre o senso comum, principalmente formais. Porém, o que
é distinto aqui não é apenas a organização do discurso e os recursos utilizados
(método e “dados”). Muitos pensadores se debruçaram sobre a questão do senso
comum e buscaram resgatar o seu “núcleo racional”. Gramsci irá sustentar que o
senso comum não é apenas erro e equívoco e que a distinção básica entre ele e a
ciência (ou filosofia) se encontra no grau de sistematização. O senso comum é
um pensamento desarticulado e contraditório, constituindo a visão de mundo de
grupos sociais oprimidos. A sua contradição vem da aceitação do mundo existente
tal como ele é convivendo com elementos de negação deste mundo. Gramsci
encontra nestes elementos de negação o núcleo racional do senso comum que,
sendo desenvolvido, poderá se tornar “bom senso”, rompendo com sua contradição
interna.
Já há algum
tempo alguns círculos das ciências sociais buscam superar esta dicotomia entre
conhecimento comum e conhecimento científico e alguns se recusam a utilizar a
expressão senso comum. A psicologia social e a sociologia vêem trabalhando,
mais recentemente, com o termo representações sociais como substituto de senso
comum. De qualquer forma, não se pode deixar de reconhecer que existe uma
distinção entre ciência e representações cotidianas (“senso comum”) e que estas
representações, na maioria das vezes, assumem a forma de “crenças arraigadas”,
o que dificulta a percepção do novo e da auto-reflexão, o que é uma grande
desvantagem, embora os cientistas não estejam livres disto, pois o seu
pensamento não é puramente e sempre científico (no sentido de ser sistemático,
empiricamente justificado e metódico).
Mas resta tratar
do caso específico das ciências sociais. As ciências sociais são aquelas que
tem por objeto de estudo o social, seja em sua totalidade, seja em aspectos
dele. O que é o social? Segundo Pierre Jaccard, a palavra social possui três
significados: 1) “inicialmente, o substantivo latino
socius designa o camarada, o companheiro de armas ou de ofício, com
quem se partilham os sofrimentos e as alegrias de um empreendimento comum. A
societas reúne os
socii, grupo restrito, enquanto que a
civitas diz respeito ao conjunto dos cidadãos. Por extensão, o
adjetivo
socialis refere-se aos
associados de um Estado ou de um povo quando este é ainda pouco numeroso”; 2)
Rousseau, “ao escrever o
Contrato Social (1762),
(...) engloba todos os homens num conjunto vivo. Simultaneamente, a palavra
social adquire um novo significado: passa a aplicar-se à sociedade humana
considerada em sua totalidade”; 3) “a partir do segundo terço do século 19, o
adjetivo social aparece, com efeito, com um sentido restrito, pois já não se
refere ao conjunto dos indivíduos que vivem em sociedade, mas apenas à parte
menos favorecida desta sociedade. Social significa então tudo o que diz
respeito à situação material dos ‘pobres’ ou dos ‘desafortunados’, a favor dos
quais são criadas ‘obras sociais”
.
O primeiro
significado se refere ao social no mesmo sentido de sociedade empresarial, ou
seja, no sentido de um negócio que possui “sócios” ou então numa relação de
camaradagem. O segundo significado percebe o social como “sociedade humana”,
isto é, como a universalidade da existência humana em coletividade. O terceiro
significado nos remete aos desfavorecidos em determinados contextos históricos
e assim um “problema social” é um “problema dos desfavorecidos”. Estas três
significações da palavra social às vezes, como observa Jaccard, se confundem.
Mas nas ciências sociais o significado utilizado é o segundo, embora em muitas
passagens, quando se fala de “problemas sociais”, “questão social”, movimentos
sociais, se utilize a palavra no terceiro sentido apontado por Jaccard. Por
conseguinte, podemos dizer que as ciências sociais são as ciências que estudam
a sociedade humana em seus diversos aspectos. Ela se distingue das ciências naturais
por que seu domínio temático (“objeto de estudo”, para utilizar linguagem
positivista) não são os fenômenos naturais (a vida, a matéria, etc.) e sim os
fenômenos sociais.
O Nascimento das Ciências Sociais
O nascimento das
ciências sociais foi proporcionado por um conjunto de acontecimentos
históricos. Estes acontecimentos históricos estão ligados ao conjunto de
mudanças que caracterizaram a emergência da sociedade capitalista. Em primeiro
lugar, a derrubada do poder da igreja e da nobreza, juntamente com a derrocada
das ideologias que sustentavam sua dominação (fundamentalmente a religião); em
segundo lugar, o desenvolvimento de novas ideologias a serviço da classe social
ascendente, a burguesia, tal como o renascimento e o iluminismo, que trazem de volta
a filosofia como arma ideológica resgatada da antigüidade (a expressão
renascimento deixa isso claro: renascer, nascer de novo, do pensamento
racional, filosófico e de outras concepções, principalmente artísticas,
oriundas da Idade Antiga; e também o iluminismo: as luzes da filosofia da
burguesia em oposição às trevas da teologia medieval); em terceiro lugar, as
revoluções burguesas (em especial, a Revolução Francesa) e a Revolução
Industrial Inglesa, com a burguesia assumindo o poder político e expandindo sua
forma de produção, o capitalismo; em quarto lugar, o desenvolvimento das
ciências naturais e das tecnologias que eram necessárias para o desenvolvimento
capitalista, e, consequentemente, o status
adquirido por elas e a crença ilimitada na razão, no progresso e na ciência; em
quinto lugar, os conflitos sociais e as lutas de classes emergentes, que
recomeçam agora com a luta entre burguesia e proletariado e não mais entre o
clero e a nobreza contra a burguesia, juntamente com a exploração e condições
de vida precária da população proletária e camponesa. Estas são as condições de
possibilidade de emergência das ciências sociais.
Já no período do
iluminismo a sociedade recebeu a atenção de diversos pensadores. Condorcet, por
exemplo, iria buscar, através da utilização da matemática, entender o mundo
social; Montesquieu, por sua vez, irá buscar encontrar leis (equivalentes às
leis naturais) que regulam a sociedade. Além destes exemplos poderíamos citar
diversos outros. Mas se, num primeiro momento, as ciências naturais não
buscavam se distinguir da filosofia, num segundo momento a situação irá se
alterar:
“as ciências da natureza, tais como foram construídas no decurso do
século 17 e 18, provieram primordialmente do estudo da mecânica celeste.
Inicialmente, aqueles que tentaram estabelecer a legitimidade e prioridade da
demanda científica das leis da natureza quase não fizeram delimitação entre a
ciência e a filosofia. Do mesmo modo que distinguiam os dois domínios, assim os
consideravam aliados na busca da verdade secular. Mas à medida que o trabalho
experimental e empírico se tornava cada vez mais crucial para a visão da
ciência, a filosofia surgia cada vez mais aos olhos da gente das ciências
naturais como mera substituta da teologia, igualmente culpada de asserções de
verdade apriorísticas não passíveis de serem postas à prova. Nos princípios do
século 19, a divisão do conhecimento em dois domínios havia descartado a noção
de que se trataria de duas esferas ‘separadas mas iguais’, para assumir — pelo menos
na perspectiva dos cientistas naturais — o aspecto de uma hierarquia: o
conhecimento tido como certo (ciência), por oposição ao conhecimento imaginado
ou mesmo imaginário (a não ciência). Finalmente, seria também por volta do
início do século 19 que o triunfo da ciência se iria afirmar do ponto de vista
lingüístico. O termo ciência, a ser associado primordialmente (e muitas vezes
exclusivamente) às ciências da natureza. Este fato assinalou o culminar da
tentativa das ciências naturais para chamar a si uma legitimidade
sócio-intelectual que era de todo distinta — e na verdade até contrária — de
uma outra forma de conhecimento chamada filosofia”.
A filosofia não
era um saber aplicável ou fundamentado no empírico e por isso devia ser
descartada. A experimentação, a mensuração e as demais estratégias das ciências
naturais apareciam como os meios que lhe as tornavam a forma de conhecimento
verdadeira, definitiva e fiel da realidade. Claro que esta concepção era
beneficiada pelo desenvolvimento técnico e tecnológico proporcionados pelo
desenvolvimento das ciências naturais e, fundamentalmente, pelas novas
necessidades políticas da classe dominante. A filosofia, útil num primeiro
momento, se tornou inútil posteriormente e a burguesia conseguiu construir uma
forma de pensamento adequada tanto às suas necessidades práticas
(desenvolvimento técnico e tecnológico) quanto ideológicas (domínio de classe
através da hegemonia cultural, justificando e legitimando a dominação e
fornecendo um saber funcional para se praticar o controle da população).
É neste contexto
que irão surgir as chamadas ciências sociais. Por um lado, o Estado capitalista
nascente precisava não apenas efetivar um amplo controle sobre a população mas
também para conseguir fazer sua dominação parecer legítima. Por outro lado,
diversos pensadores que identificavam-se com os explorados e oprimidos
começaram a desenvolver idéias sobre as relações sociais, fundamentando-se seja
na filosofia seja nas ciências nascentes. De um lado vai se desenvolvendo os precursores
do pensamento sociológico e de outro os primeiros pensadores socialistas,
especialmente os socialistas utópicos. Mais tarde a divisão fica clara entre
positivistas e socialistas (marxistas e anarquistas). As ciências sociais
nascem neste contexto e tendo esta influência tanto dos pensadores
conservadores quanto dos pensadores revolucionários ou reformistas.
O Estado
capitalista sentia cada vez mais a necessidade de se fundamentar em um saber
sistemático e de dados sobre a realidade social para tomar suas decisões. Para
isso obteve a ajuda dos “filósofos sociais” que contribuíram para o nascimento
das universidades modernas. Segundo Wallerstein e seus colaboradores,
“os filósofos sociais começaram, então, a falar de uma ‘física do
social’, e os pensadores europeus começaram a reconhecer a existência, no
mundo, de múltiplas espécies de sistemas sociais (...), cuja variedade se
impunha explicar. Foi neste contexto que a universidade (...) foi revitalizada
nos finais do século 18 e princípios do século 19, tornando-se o lugar
institucional preferencial para a criação de conhecimento”.
Segundo este
autor, o século 19 foi caracterizado por uma expansão da disciplinarização e
profissionalização do saber, através das instituições universitárias nascentes.
A “revitalização das universidades” foi obra de historiadores, especialistas em
literatura nacional, classicistas, etc., que, posteriormente, buscavam atrair
os cientistas naturais para estas instituições, embora isto tenha gerado
conflitos entre os cientistas naturais, por um lado, e os futuros cientistas
sociais, por outro. Mas tais instituições abririam um caminho para a tentativa
de criação e sistematização das ciências sociais.
É neste contexto
que irá nascer o positivismo. O positivismo surge da idéia de se criar
“ciências positivas da sociedade”. As ciências positivas eram as ciências
naturais. O status adquirido por
estas e os seus resultados práticos fizeram com que todos aqueles que queriam
legitimidade e status no mundo da
cultura buscassem abandonar a filosofia e se dedicassem ao cultivo da ciência.
A brecha aberta pelo Estado capitalista e pelas universidades nascentes
possibilitavam o surgimento de pensadores buscando criar novas ciências,
inclusive “ciências da sociedade”, mas que para ter status científico se submetiam ao modelo das ciências naturais.
Segundo Hobsbawn:
“A evolução liga as ciências naturais às ciências humanas ou sociais,
embora o último termo seja anacrônico. Porém, a necessidade de uma ciência
específica e geral da sociedade (distinta das várias disciplinas relevantes já
tratando de assuntos humanos), era pela primeira vez sentida. A British
Association for the Promotion of Social Science (1857) tinha meramente o
modesto objetivo de aplicar métodos científicos às reformas sociais.
Entretanto, a sociologia, termo inventado por Auguste Comte em 1839 e
popularizado por Herbert Spencer (que escreveu um livro prematuro sobre os
princípios desta e de numerosas outras ciências em 1876), era muito falada.
Pelo final de nosso período, ainda não havia produzido nem uma disciplina
reconhecida nem um assunto de pesquisa acadêmica. Por outro lado, o amplo mas
cognoscível campo da antropologia emergia rapidamente como uma ciência,
reconhecida, saída da filosofa, direito, etnologia, literatura de viagem, do
estudo da língua e do Folclore e das ciências médicas (via o então popular
assunto da ‘antropologia física’, que levou a moda de medir e colecionar os
crânios de vários povos). A primeira pessoa a ensiná-la oficialmente foi
provavelmente Quatrefages em 1855, na cadeira que existia para essa matéria no
Museu Nacional de Paris. A fundação da Sociedade Antropológica de Paris (1859)
foi seguida por um repentino interesse na década de 1860, quando associações
similares foram fundadas em Londres, Madri, Moscou, Florença e Berlim. A
psicologia (outro termo cunhado recentemente, desta vez por John Stuart Mill)
ainda estava ligada à filosofia — A. Bain e seu livro Mental and Moral
Science (1868) ainda combinava-a com a ética — mas recebia cada vez mais uma
orientação experimental com W. Wundt (1832-1920), que havia sido assistente do
grande Hemholtz. Era inquestionavelmente uma disciplina aceita pela década de
1870, pelo menos nas universidades alemãs. Esta matéria também atingia os
campos da sociologia e antropologia, e em 1859, um jornal era fundado ligando-a
com a lingüística”.
Augusto Comte
irá falar em “física social” e depois irá criar os termos “sociologia” e
“positivismo”. A idéia de utilização dos métodos das ciências naturais não era
nova mas ganhava um novo significado neste contexto histórico. Mas Comte não
conseguiu se livrar totalmente da filosofia e perdeu credibilidade ao falar em
“catecismo positivista” e “igreja positivista”. Coube ao seu discípulo, Émile
Durkheim, sistematizar e concretizar as ambições de Comte. Durkheim foi um
grande estrategista. Em primeiro lugar, fez questão de separar a sociologia,
ciência da sociedade, da filosofia, de caráter especulativo. Em segundo lugar,
buscou afirmar a idéia de que as ciências humanas devem utilizar os mesmos
métodos das ciências naturais e localizou a diferença entre ambas no objeto de
estudo: a sociologia tem como objeto de estudo os fatos sociais, que devem ser
concebidos como
coisas, coisas
sui generis, coisas sociais. Uma coisa
oferece resistência ao cientista, é dotada de objetividade e exterioridade ao
indivíduo, tal como os fenômenos naturais. Ora, se os fatos sociais são dotados
de objetividade como os fenômenos naturais, então eles podem ser estudados com
a mesma objetividade que estes. Assim, a idéia de uma ciência social se torna
legítima. Também buscou separar o estudo sociológico do estudo psicológico,
outra ciência que vinha se desenvolvendo neste período, buscando também se
separar da filosofia
.
Durkheim também foi responsável pela implantação da cadeira de sociologia na
universidade de Sorbonne, ou seja, cavou também um espaço institucional para
realizar seu projeto. Mas não ficou apenas aí: também fundou uma revista —
L’Année Sociologique — e se rodeou de
uma equipe de pensadores para concretizar seu projeto de criar uma ciência da
sociedade. Outro pensador que cumpriu um papel análogo e com a mesma
importância, mas na Alemanha
,
foi Max Weber. Weber, apesar de algumas diferenças (Weber não aceitava a idéia
de unidade metodológica entre ciências sociais e ciências naturais, entre
outros pormenores e divergências do ponto de vista teórico), também conquistou
espaço institucional para a sociologia (através das universidades e também de
uma publicação que ajudou a fundar com Sombart e Jaffe, a revista
Archiv für Sozialwissenschaft und
Sozialpolitk). Muitos outros pensadores contribuíram neste período
histórico (fim do século 19 e início do século 20) para a consolidação e
sistematização da sociologia.
Na primeira
metade do século 17, o médico Bernardo Varenius escreve Geografia Geral e vai contribuir, tal como Montesquieu, Leibnitz,
com o processo que irá permitir o surgimento da geografia. Eles abriram
caminhos para o desenvolvimento da ciência geográfica, que iria ser constituída
paulatinamente a partir das contribuições de Humboldt e Karl Ritter e,
posteriormente, Ratzel, Reclus, Vidal de la Blache, Kropotkin, entre outros.
Sem dúvida, o nascimento da geografia estava intimamente ligado com interesses
de classes e interesses nacionais, principalmente os de caráter geopolítico.
A ciência
econômica também vai se desenvolver e sistematizar neste período. A partir da
contribuição da chamada “economia política clássica” e de Karl Marx, a ciência
econômica vai se desenvolvendo. O marginalismo vai buscar refutar Marx e
proporcionar o status de
cientificidade para a economia, utilizando cada vez mais os recursos da
matemática e estatística.
A psicologia vai
se desenvolvendo neste período, embora muitos a considerassem uma “ciência
natural”. O alemão W. Wundt lançou o livro-texto
Fundamentos da Psicologia Física, criou um laboratório em Leipzig e
publicou uma revista intitulada
Philosophische
Studien. Para ele, a psicologia era uma ciência experimental, constituindo
um ramo das ciências naturais. Mas Wundt, ao contrário de alguns de seus
discípulos, uma nova geração de positivistas, considerava que ela era apenas
parcialmente um ramo das ciências naturais. Os seus discípulos consideravam que
o objeto de estudo da psicologia devia ser o organismo e não a mente, como
pretendia Wundt (e também W. James). Sendo assim, a psicologia seria realmente
uma ciência natural, pois o organismo não remete ao social como a mente humana,
necessariamente, o faz. Nos Estados Unidos, Watson irá considerar a psicologia
uma ciência natural cujo objeto de estudo é o comportamento (humano!). Assim, a
psicologia irá se constituindo como ciência. Mas ela não era vista apenas como
ciência natural. O próprio Wundt escreveu dez volumes de Psicologia Social e
pensava que os processos mentais e a linguagem são criados pela “comunidade
humana” e não pelo indivíduo isolado. A psicologia social surge como uma
subdisciplina da psicologia e se orienta nos moldes positivistas do
behaviorismo. Mas ela vai se desenvolvendo e cada vez mais se aproximando das
ciências sociais. É devido a isto que surgirá a distinção atual entre as formas
sociológica e psicológica de psicologia social
.
Muitos psicólogos e epistemólogos irão considerar a psicologia como ciência
social e isto é mais forte ainda no que diz respeito à psicologia social.
A antropologia
também irá dar os seus primeiros passos com o evolucionismo e posteriormente o
difusionismo, ultrapassando os meros relatos de viagem e a “coleção de crânios”
da antropologia física. As obras de Morgan, Bastian, Bachofen, Tylor,
Lévy-Bruhl, e Malinowski, entre outros, possibilitaram o nascimento da
antropologia como ciência social
.
A sua consolidação vai se dar principalmente com a expansão colonial, onde
estudos sobre os povos colonizados se fará necessário: “conhecer para dominar”.
E não deixará de haver interesse em estudar as “sociedades tribais” e
“comunidades rurais” para o exercício da dominação e de controle da população.
A palavra
demografia surge em 1855. Ela surge no título da obra de Achille Guillard:
Elementos de Estatística Humana ou
Demografia Comparada. O objeto de estudo desta ciência é a população e seu
livro clássico
Teoria Geral da População,
do francês Alfred Sauvy. Este é, sem dúvida, o maior clássico da ciência
demográfica, embora sua obra seja datada da década de 50 do século 20. Ele
utilizou os mesmos procedimentos que os demais cientistas sociais para
constituir esta nova ciência social: fundou um espaço institucional para ela,
através de instituições universitárias e estatais e de publicações
.
A historiografia
(ou simplesmente “história”) também se desenvolve com as obras de diversos
pesquisadores. Os precursores, como Bossuet e Vico, juntamente com a filosofia
da história, irão lançar as bases de desenvolvimento da historiografia como
ciência. Guizot, Macauley, Thierry, Michelet e outros irão produzir as
primeiras escolas históricas nacionais européias. Predominavam as correntes
positivistas e historicistas, e marginalmente o materialismo histórico de Marx
e Engels. A partir do século 20, o marxismo e a Escola dos Annales irão
proporcionar um desenvolvimento e sistematização da historiografia.
A psicanálise
fundada por Freud e desenvolvida por Rank, Adler, Jung, Reich, Lacan, Fromm,
entre outros, irá se tornar cada vez mais influente e sistemática, embora
muitos questionem o seu caráter científico devido ao caráter “inobservável” de
seu objeto de estudo, o inconsciente, e devido ao fato de que a formação do
psicanalista não ocorre em instituições universitárias. Para muitos a
psicanálise não é uma ciência social,
pois se ocupa do indivíduo, do inconsciente ou do aparelho psíquico. Porém, o
próprio Freud não explicava o
indivíduo por ele mesmo (o complexo de Édipo, por exemplo, é constituído numa
relação familiar, que é uma relação social), o inconsciente como produto físico
(ele é povoado pelos “desejos reprimidos”, o que nos remete à repressão, que é
realizada por outros indivíduos, constituindo uma relação social) e o aparelho
psíquico como produto individual (o inconsciente é derivado da repressão social
e a consciência é constituída a partir da introjeção da moral social
estabelecida). Os continuadores de Freud irão enfatizar ainda mais o caráter
social da psicanálise e por isso, se ela for considerada uma “ciência”, ela deve
ser vista como uma ciência social.
A ciência
política vai paulatinamente se desenvolvendo. A ideologia política e a ciência
política se confunde e muitas vezes tal ciência é ensinada mais como história
das idéias políticas do que como ciência propriamente dita. Os escritos de
Maquiavel, Hobbes, Locke, Rosseau (ou seja, a filosofia política), juntamente
com os escritos de Marx, Lênin, Gramsci, Sorel, entre outros, irão ser o ponto
de partida para o desenvolvimento da ciência política, que irá se sistematizar
e se “cientificizar” a partir das obras de Max Weber, do institucionalismo e do
funcionalismo sistêmico norte-americano. Estas, entre outras ciências sociais
(algumas buscando ser reconhecidas como ciência e sendo questionadas como tal,
que é o caso, por exemplo, do direito, da pedagogia, estatística, da ciências
da religião, ciências da moral, ciências da educação, ciências da
administração, ciências da comunicação, etc.)
vão se desenvolvendo e sistematizando. Surge, paulatinamente, as
ciências sociais.
Mas não se pode
deixar de lado o desenvolvimento de uma corrente marginal que irá manter um
grande diálogo e debate com as ciências sociais, irá influenciá-las, irá ser
influenciada por elas: o marxismo. Karl Marx não pretendia criar uma ciência da
sociedade e nem cavar espaço institucional para tal ciência. Seus objetivos
eram políticos: o que Marx queria era descobrir o processo de transformação
social e a possibilidade de superação do capitalismo e de implantação da
autogestão social, ou, segundo sua linguagem, da “livre associação de
produtores”. Por isso, ele não tinha pretensão de utilizar os métodos das
ciências naturais e nem pensava em “neutralidade”.
Para ele, era
necessário partir do ponto de vista da classe social explorada para se atingir uma
consciência correta da realidade. Isto decorria da constatação de que numa
relação de dominação, os dominantes não podem desenvolver sua consciência ao
nível de reconhecer o processo de dominação, pois isto forneceria armas para os
dominados se rebelarem. Cabe aos dominados, devido ao seu interesse de
reconhecer como ocorre o processo de dominação e exploração, desvendar o
segredo da dominação e a partir disto buscar sua libertação e o fim da
dominação. O proletariado, enquanto classe explorada pela burguesia, é o agente
revolucionário que pode promover a transformação social e o fim da exploração e
dominação de uma classe sobre outra e por isso é somente partindo de seu ponto
de vista que se pode atingir uma consciência correta da realidade social. Aqui
não há espaço para a neutralidade. Por isso muitos adversários irão questionar
o caráter “científico” do marxismo e muitos marxistas, aceitando a definição
dominante de ciência, irão concordar com isto. Outros irão distinguir entre
ciência burguesa e ciência proletária, entre verdadeira ciência e falsa
ciência, para reafirmar o caráter científico do marxismo, que irá se
desenvolver como uma corrente teórica-metodológica no interior de todas as
ciências sociais e até mesmo de algumas ciências naturais
.
A partir da
produção destas idéias, forjadas por um conjunto de pensadores como Adam Smith,
David Ricardo, Thomas Malthus, Karl Marx, Augusto Comte, Émile Durkheim, Max
Weber, Georg Simmel, Vilfredo Pareto, Hebert Spencer, Stuart Mill, L. H.
Morgan, J. Bachofen, F. Simiand, entre inúmeros outros, vai se constituindo e
posteriormente se sistematizando um vasto campo de ciências, denominadas
“sociais”. A sociologia, a psicologia, a antropologia, a ciência política, a
economia, a historiografia, a geografia, etc., vão se constituindo e
desenvolvendo. A partir do início do século 20 este desenvolvimento vai atingir
um nível extremamente elevado e novas ciências sociais irão surgir, bem como
divisões internas dentro de cada ciência e disputas entre elas irão ocorrer. Aí
entramos na questão da divisão entre as ciências sociais.
A divisão das ciências sociais
Todos sabemos
que não existe apenas uma ciência social e sim várias “ciências sociais”. Quais
são estas ciências e quais são os critérios de classificação? As ciências
sociais são inúmeras e muitas ainda não foram sistematizadas e por isso não
faremos uma lista delas. Trataremos da divisão entre as ciências sociais e ao
tratarmos de tal divisão denominaremos uma quantidade enorme de ciências
sociais e, o que é mais importante, colocaremos em evidência as principais
ciências sociais.
A divisão das
ciências sociais coloca um problema: qual o critério para dividir as ciências
sociais? Tendo em vista que a “unidade do social” como explicar a pluralidade
das ciências sociais? Na verdade, existem duas formas básicas de se explicar a
pluralidade das ciências sociais e, consequentemente, realizar a sua
classificação. O primeiro critério se encontra na idéia que a pluralidade das
ciências sociais é oriunda não do seu objeto de estudo e sim da forma como as
diversas ciências sociais analisam a realidade social. Pierre Jaccard afirma
que as ciências naturais partem da indução ou da dedução, mas as ciências
sociais possuem outros procedimentos:
“quanto a nós, em ciências sociais, distinguiremos três conhecimentos,
cada um dos quais será característico de disciplinas determinadas: o
conhecimento descritivo, o analítico e o sintético. Não esqueçamos, porém, que,
no processo de indução, a análise e a síntese são complementares. Em todas as
ciências modernas, da natureza e do homem, e tanto na fase de observação como
na da experimentação, a investigação processa-se sempre de baixo para cima”.
A partir desta
posição, este autor apresenta a seguinte classificação das ciências sociais: as
ciências sociais descritivas, as ciências sociais analíticas e as ciências
sociais sintéticas. As ciências sociais descritivas são aquelas que narram
minuciosamente os fatos históricos, políticos ou quaisquer outros. As ciências
sociais analíticas são aquelas que isolam diferentes elementos da vida social,
tais como a produção, o governo, a população, etc. As ciências sociais
sintéticas são mais abstratas e buscam agrupar os elementos acima citados com o
objetivo de compreender a estrutura, a globalidade, a historicidade ou
especificidade deles. Elas buscam fornecer uma visão mais globalizante através
da síntese dos elementos componentes da vida social.
Ainda segundo
este autor, as ciências sociais descritivas seriam a estatística, a etnografia,
a sociografia; as ciências sociais analíticas seriam a economia política, a
demografia, a geografia humana, a ciência política (há a tentativas de criar ou
considerar ciências sociais analíticas a criminologia, a polemologia, a ciência
do direito, etc., cujo caráter científico é questionável); as ciências sociais
sintéticas são a lingüística, a etnologia, a história, a sociologia, a
antropologia, a psicologia social, a patologia social. O autor distingue, nas
ciências sociais sintéticas, uma hierarquia, na qual a sociologia seria a
ciência da realidade social global e as demais seriam “ciências periféricas”.
A. Sedas Nunes
parte da idéia de fato social total,
cunhada pelo antropólogo Marcel Mauss, para realizar a sua análise da unidade
do social e a pluralidade das ciências sociais. A unidade do social pode ser
compreendida através deste conceito. Assim, este autor critica aqueles que
querem ver a diferenciação entre as ciências sociais através de seus “objetos
de estudo”: a ciência econômica estudaria a realidade econômica, a ciência
política a realidade política, a demografia a realidade demográfica e assim por
diante. Sedas Nunes utiliza um exemplo (o das classes sociais) para esclarecer
seu ponto de vista:
“As classes sociais têm sido objeto de inúmeras investigações
sociológicas, como elementos estruturais e estruturantes basilares, que
efetivamente são, de certos tipos de sociedade. interessam, por conseguinte, à
sociologia.
Mas só à sociologia? Na verdade interessam — ou deveriam interessar — a
todas as ciências sociais. À economia, por duas razões. De um lado, a
estrutura das atividades e das relações econômicas representa, numa dada
sociedade, a matriz básica na qual as ‘situações de classe’ se definem e a
partir da qual as classes sociais se podem propriamente constituir. Do outro,
mecanismos econômicos tão relevantes como a formação de capital, o esquema da
sua utilização, o ritmo de crescimento (e a composição) do produto nacional, a
repartição dos rendimentos, o perfil da procura global, resultam de todo um jogo
de ações individuais e coletivos, onde cada um dos agentes (indivíduos ou
grupos) atua a partir de determinadas posições que, por sua vez, se inserem no
(e dependem do) quadro geral das posições, relações e práticas sociais das
diferentes classes.
Mas as classes sociais, quando se acham efetivamente constituídas, são
forças sociais portadoras de interesses distintos e, quanto a algumas delas, de
interesses antagônicos. Poderá, pois, entender-se, explicar-se, a estrutura e a
vida política de qualquer sociedade onde forças dessa natureza atuem, se
precisamente se abstrair da sua ação, dos seus interesses, dos seus projetos,
do seu poder? É evidente que não, e portanto, ao menos por este motivo (mas há
outros), as classes sociais também interessam à ciência política.
Interessam igualmente à demografia, uma vez que as determinantes
sociais (natalidade, mortalidade, dimensão média das famílias, idade média em
que os indivíduos se casam, etc.) de que dependem a composição e a evolução
quantitativas das populações, acusam sensíveis diferenças de classe para classe
social.
O que se diz da demografia, pode dizer-se da geografia humana,
pois que as classes sociais não se distribuem uniformemente por todo território
ocupado por uma sociedade. A estrutura das classes não é a mesma nas grandes
metrópoles, nas pequenas cidades e nas zonas rurais — e varia sensivelmente com
as características geo-econômicas destas últimas, ao mesmo tempo que as
influencia de modo muito significativo. Em suma: é perfeitamente possível elaborar
uma geografia das classes sociais.
Quanto à psicologia social, sabe-se por exemplo que as atitudes,
as opiniões, os preconceitos coletivos (sobre temas políticos, sociais,
religiosos, morais, raciais, de educação, etc.) que nos indivíduos se manifestam,
são em larga medida determinados pela classe social a que pertencem (ou a que
aspiram pertencer). Logo, uma psicologia social cientificamente válida não pode
abstrair da existência de classes sociais.
De resto, nem mesmo a psicologia individual as pode ignorar. O
desenvolvimento psíquico (intelectual e afetivo) do indivíduo e as suas
sucessivas reestruturações psicológicas desde a primeira infância não decorrem
de uma dinâmica puramente interna, mas de uma permanente interseção com o meio
físico, social e cultural. Sendo assim, as diferenças de meio que se encontram
associadas a diferenças de classe social intervêm naqueles processos e têm
inegáveis efeitos, não somente sobre os níveis e formas de desenvolvimento
atingidos pelos indivíduos nas diferentes idades por que vão passando, mas
também sobre a estruturação definitiva da sua personalidade e dos seus
mecanismos psicológicos (de tal modo que certos psicólogos, como Jean-Claude
Filloux, admitem a necessidade de se utilizar, em psicologia, o conceito de
‘personalidade de classe’).
No que se refere,
finalmente, à lingüística, é de supor que não será necessário insistir
em que é precisamente ao nível da linguagem que se podem aperceber algumas das
mais visíveis expressões das diferenças entre as classes sociais”.
Sendo assim,
qual é a razão da diferenciação das ciências sociais? Para o autor, remontando
a ideologia althusseriana, a base de tal diferenciação se encontra na
construção de objetos científicos, ou seja, não são os objetos de estudo em si
que produzem a pluralidade de ciências sociais e sim os objetos construídos por
cada uma das ciências sociais. Cada ciência social
produz seu objeto próprio. Segundo ele, “as teorias e os métodos de
uma qualquer ciência fazem, constróem, ‘objetos’. Toda ciência, seja qual for,
só está propriamente constituída como tal — isto é: como ‘corpo de
conhecimentos e de resultados’ — a partir do momento em que seja possível
afirmar que o sistema de produção que a produz já construiu o seu próprio
objeto científico”
.
A ciência cria
um código de leitura do real, distinto do código, por exemplo, do senso comum.
Existe um mesmo objeto real, mas que pode ser “lido” de forma diferente através
de um novo código de leitura, fazendo dele um “objeto conceitual” ou distintos
“objetos conceituais”. Um exemplo pode esclarecer tal concepção. O Estado para
o senso comum é composto pelos governantes eleitos. Para a ciência política, o
Estado é um aparelho burocrático e que possui uma dinâmica própria, em que os
governantes eleitos são apenas uma peça em uma engrenagem muito mais ampla e
com uma autonomia limitada. Qualquer governo irá combater a inflação e/ou a
crise econômica, independente da concepção política dos governantes, mesmo se
ele for composto por comunistas, liberais ou fascistas.
Portanto, a
diversidade de ciências sociais é explicada pelos “códigos de leitura”
diferentes do real, que criam “objetos científicos”. Por conseguinte, a
diferença entre as ciências sociais são produzidas por elas mesmas e não pela
realidade. Elas diferem entre si nos seguintes aspectos: as problemáticas
teóricas; as interrogações que realizam; os objetos científicos que produzem; e
os códigos de leitura que propõem.
Estas duas
posições (a de Jaccard e a de Sedas Nunes) sobre a pluralidade das ciências
sociais possuem o que alguns chamariam de “rigor lógico”. Mas não fornecem uma
explicação convincente. Ambas as posições nos enviam para a maneira de abordar
a realidade como forma de explicar a diferenciação no interior das ciências
sociais. Porém, julgamos muito mais adequado explicar a diferença entre as
ciências sociais não do ponto de vista puramente lógico, postura próxima das
ciências formais, embora Jaccard seja psicólogo e sociólogo e Sedas Nunes seja
sociólogo, e sim do ponto de vista social, pois as ciências sociais são elas
mesmas fenômenos sociais que buscam explicar outros fenômenos sociais.
A chave para se
compreender a pluralidade das ciências sociais se encontra na divisão social do
trabalho. A expansão da divisão social do trabalho produzida pelo capitalismo
também gerou uma divisão social do trabalho intelectual, fundando as diversas
ciências sociais. Estas se justificam por estudar os elementos divididos da
sociedade. Assim, existe uma divisão social do trabalho na realidade e existe uma
divisão do trabalho intelectual para analisar esta divisão social.
Em outras
palavras, existe uma divisão social do trabalho que proporciona elementos
diferenciados na sociedade. O processo de produção é diferente do processo
político institucional. Daí se separar economia de política. A economia como
ciência da produção tem um objeto de estudo específico: a produção. A ciência
política tem como objeto (embora não haja consenso sobre isto) a política
institucional. Sem dúvida, existe o fenômeno social da produção e o fenômeno
social da política institucional e esta separação é fruto do processo histórico
da divisão social do trabalho, que cria os especialistas em política (o que
Weber irá chamar de políticos profissionais) os agentes governamentais e a burocracia
estatal e aqueles que são responsáveis pelo processo de produção, os
trabalhadores, os gerentes e proprietários. São classes sociais e categorias
sociais e profissionais constituídas socialmente pela divisão social do
trabalho. Por isso estes “objetos de estudo” existem realmente. Mas além disso
também existe distinção entre estes fenômenos. O fenômeno dito “econômico” e o
fenômeno dito “político” são distintos. Daí surgirem ciências (a economia e a
ciência política) para estudar tais fenômenos. Mas estas ciências poderiam
constituir uma única ciência social que se dividiria em diversas subdisciplinas
.
Elas não se
unificam por que se cria uma divisão social do trabalho intelectual. Um dos
motivos disto se encontra na própria realidade social de uma sociedade
extremamente complexa que cria a aparência de que seus elementos componentes
são autônomos e independentes, mas decorre principalmente da constituição de
uma camada social especializada em produzir saber sobre a sociedade e seus
elementos específicos: os cientistas sociais. Estes criam interesses próprios e
buscam defendê-los de qualquer maneira. Cada ciência social possui seus
precursores, seus nomes consagrados (os “clássicos”), seus espaços
institucionais, suas publicações, etc. Isto cria o interesse em manter a
separação entre as ciências sociais e produz a tentativa de cada uma em
produzir seus próprios métodos, técnicas, terminologia e “teorias”. Assim,
neste sentido, Sedas Nunes tem razão quando fala em “construção de objetos
científicos” realizada pelas ciências sociais.
Porém, quando se
toma essa divisão social do trabalho do ponto de vista da separação, do
isolamento, justificando-o seja pela sua existência real ou pelo aparato
conceitual de cada ciência, o que se faz é criar uma ideologia que não
compreende a sociedade como uma totalidade e que não é possível separar suas
partes constituintes. Autonomizar os elementos componentes da sociedade,
dotando-os de independência em relação aos outros elementos é um procedimento
ideológico que toma o aparecer social
como sendo a realidade social, substituindo a essência pela aparência.
É claro que
existem interesses sociais na manutenção desta visão aparente da realidade
social. Como já dizia Michel Foucault, o saber está intimamente ligado com o
poder. Cada nova forma de poder gera uma nova forma de saber
.
O hospício gera a psiquiatria, a prisão a criminologia, a escola a pedagogia, o
sistema colonial a antropologia e assim por diante. A psiquiatria não pode
reconhecer as relações sociais por detrás da “loucura” e a pedagogia não pode
reconhecer os conflitos sociais por detrás da relação professor-aluno, pois
isto colocaria elas mesmas em questão e também as instituições que as produzem
como uma necessidade.
Tomemos um
exemplo para esclarecer isto. Se existe o processo de produção, então tal
processo pode ser analisado teoricamente. Mas se a ciência econômica separa o
processo de produção das lutas de classes
(luta em torno da jornada de trabalho, por melhores salários, pelo aumento
da produtividade por parte da classe capitalista, etc.) por ser ela “objeto de
estudo” da sociologia; da cultura e
tudo o que está relacionado com ela (os valores, a moral, a religião, etc.) por
ser objeto da antropologia ou da sociologia; da ação estatal (com a política econômica, legislação trabalhista,
a legislação fiscal e de mercado, etc.) por ser objeto da ciência política, e
assim por diante, o que se faz é se limitar ao aparecer social da divisão
social do trabalho ao invés de apresentar sua realidade efetiva, pois existe a
divisão social do trabalho mas por detrás dela existem as relações instauradas
entre os diversos aspectos componentes da sociedade.
Desta forma, a
divisão entre as ciências sociais se deve à divisão social do trabalho e também
à divisão do trabalho intelectual que toma aquela primeira divisão em sua
aparência social. O aparecer social da divisão social do trabalho permite o
processo de especialização e divisão do trabalho intelectual e este, uma vez
existindo, irá reforçar tal aparência
.
Hierarquia e Conflito nas Ciências Sociais
A formação das
ciências sociais ocorre simultaneamente com o surgimento de um conflito entre
elas. Augusto Comte considerava a sociologia como a principal ciência social.
Para ele, todos os departamentos de uma universidade deveriam passar pelo
departamento de sociologia. Pierre Jaccard considera a sociologia como a
“principal ciência social”. Para alguns antropólogos, a ciência antropológica é
a ciência social fundamental. Marcel Mauss, irá afirmar que a sociologia e a
psicologia são uma parte da biologia, e esta, por sua vez, é uma parte da
antropologia (...). Alguns historiadores irão colocar a história como a
principal ciência social: “tudo é história”. Alguns até lançam mão da frase de
Marx e Engels segundo a qual só existiria uma única ciência, a ciência da
história
.
É a mesma idéia que irá proporcionar o determinismo geográfico (geografia), o
determinismo cultural (antropologia), o determinismo econômico (economia), o
determinismo sexual (psicanálise), etc.
Bottomore fala
da tentação em fazer da sociologia uma “disciplina imperialista” e do seu saber
enciclopédico que provoca a sua rejeição por algumas das outras ciências
sociais
.
Porém, o que observamos aqui é não só um conflito como também o problema da
hierarquia nas ciências sociais. A sociologia se desenvolveu de forma
fantástica entre as ciências sociais. Ela se ocupa, principalmente, mas não
unicamente, da sociedade capitalista. Alguns sociólogos fizeram extensos
trabalhos sobre a história das sociedades em geral. Durkheim, com os seus
termos solidariedade mecânica e solidariedade orgânica, duas formas de divisão
social do trabalho que separam as “sociedades tradicionais” da “sociedade
moderna”, adotou esta visão mais ampla da ciência da sociedade. Weber ao analisar
as sociedades orientais e suas religiões e ao estudar a transição do feudalismo
para o capitalismo e Marx ao analisar o desenvolvimento dos diversos modos de
produção (comunidade primitiva, modo de produção “asiático”, escravismo,
feudalismo, capitalismo, etc.) também fizeram o que alguns chamam de sociologia
histórica. Ao fazer isto ela “invade” os domínios da historiografia. Este é um
dos motivos que fizeram com que tais estudos fossem abandonados, embora não de
todo, como demonstra os trabalhos de Norbert Elias sobre o
Processo Civilizatório, entre outros. Quando realiza estudos de
sociologia econômica, invade o terreno da economia; quando faz estudos de
sociologia política, penetra no terreno da ciência política; quando se dedica
aos problemas das relações de trabalho, da burocracia, da administração, das
organizações (sociologia do trabalho, da burocracia, da administração e das
organizações, respectivamente), entra em terreno típico das “teorias da
administração”. O mesmo ocorre com todas as outras áreas abarcadas pelas
“sociologias especiais”. Podemos dizer que a sociologia ocupa um lugar de
destaque nas ciências sociais e que isso é reconhecido por especialistas de
outras áreas. Mas a disputa não cessa e não é apenas a sociologia que possui esta
tendência “imperialista”. A antropologia e a historiografia, devido a amplitude
de suas disciplinas, também possuem esta tendência. A geografia e a economia
estão entre estas “ciências imperialistas”.
Mas ao
reconhecermos a unidade do social fica a pergunta: então por qual motivo se
busca manter a pluralidade das ciências sociais? A pergunta fica sem resposta
mas não fica sem busca de soluções práticas. Tais soluções são apresentadas
pelas correntes teórico-metodológicas. Na sociologia é comum a divisão entre
sociologia conservadora e sociologia crítica; na historiografia, entre Escola
dos Annales e marxismo; na geografia, na psicologia, etc. também se divide
entre duas tendências mais fortes: a tendência marxista ou similares e a
tendência conservadora, chamada geralmente de positivista, mas englobando uma
diversidade de correntes. Estas correntes buscam criar um “método único” para
as ciências sociais e, se concretizassem esta ambição, promoveriam a tão
propalada unidade das ciências sociais. O estruturalismo, o funcionalismo, a
fenomenologia, o marxismo, são alguns exemplos que poderíamos citar. O
funcionalismo nasce com Durkheim, na sociologia, e logo invade a antropologia
(Malinowski, Radcliffe-Brown) e influencia a ciência política na versão do funcionalismo
sistêmico (Parsons, Merton, Easton). O estruturalismo nasce com Saussure, na
lingüística, e se espalha pela antropologia (Lévi-Strauss), pela semiologia e
teoria da literatura (Barthes), e por outras ciências sociais, influenciando
até mesmo a filosofia (Foucault, Althusser) e criando polêmicas no interior do
marxismo (além do próprio Althusser, que se dizia marxista, isto ocorreu junto
com alguns antropólogos e outros pesquisadores que se intitulavam marxistas). A
fenomenologia surge na filosofia (Hurssel foi o seu principal ideólogo) e
penetra na pedagogia, na sociologia (Schultz) e em outras ciências sociais. Mas
a corrente mais importante foi o marxismo, pois além de influenciar todas as
ciências sociais (sociologia, antropologia, economia, ciência política,
psicologia, psicologia social, psicanálise, demografia, ecologia social,
geografia, historiografia, teoria da literatura, lingüistica, pedagogia, etc.,
etc.), também influencia a filosofia, as ciências naturais e até mesmo algumas
correntes religiosas (sem falar em correntes políticas não-marxistas). Esta
capacidade se deve ao fato de não ter surgido como uma ciência e sim como uma
corrente teórica e política relativamente independente da divisão do trabalho
intelectual.
Porém, a qual
conclusão se pode chegar sobre a hierarquia e conflito nas ciências sociais?
Isto se deve ao fato de que as chamadas ciências sociais estão envolvidas até o
pescoço com a sociedade que é o seu objeto de estudo e por isso não pode se
desvencilhar das disputas existentes no seu interior. No interior das ciências
sociais se reproduz a disputa existente na sociedade. Tanto num nível mais
profundo e amplo — que se manifesta no conflito entre marxismo e positivismo,
expressão de um conflito de classes — quanto no nível mais restrito, como
conflitos de categorias profissionais buscando para sua ciência um status superior. As tentativas de
superação destes conflitos, tal como na idéia de interdisciplinaridade, se
revelam ilusórias. Sendo assim, a disputa no interior das ciências sociais
permanece. E a posição hierárquica também continua motivo de conflitos. Como
resolver esta questão? Tal como Marx falava a respeito da superação da ilusão,
podemos, parafraseando-o, afirmar que a superação destes conflitos entre as
ciências sociais só pode ocorrer com o fim da situação que os produzem.
Artigo publicado originalmente em: Estudos – Revista
da Universidade Católica de Goiás. Vol. 27. no 04,
out.dez./2000. pp. 725-754.
Bibliografia
Wallerstein, Imannuel (org.). Para Abrir as Ciências Socia