REFLEXÕES SOBRE RELAÇÕES DE TRABALHO E IDEOLOGIA EM KARL MARX, por Erisvaldo Souza.


            “A produção cria o consumidor”. Karl Marx

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Karl Marx (1818-1883) pensador alemão que desenvolveu diversas obras e artigos sobre temáticas variadas, como: Sociologia, Política, Economia, História, etc, algumas em conjunto com seu companheiro de lutas sociais e pesquisa Fredrich Engels, como: A Ideologia Alemã de 1847 e o próprio Manifesto do Partido Comunista de 1848.
O contexto da produção da obra de Marx é a Europa dos anos de 1840 até o final dos anos de 1870, período marcado pelo desenvolvimento do capitalismo como modo de produção, do desenvolvimento da ciência como forma de conhecimento e da organização e avanço das lutas operárias na Europa.
Na Europa dos anos de 1840-1850, aconteceram vários levantes de trabalhadores em luta contra o capital e seus representantes, ou seja, a burguesia, que Marx colocava esta classe social como sendo uma classe que transformou o modo de produção feudal para o modo de produção capitalista. Marx, em seus escritos, vai analisar burguesia e proletariado como sendo classes sociais antagônicas e que estão em constante luta, a luta de classes é uma das preocupações centrais da obra de Marx.
A questão da luta de classes para Marx, esta é “o motor da história”, pois segundo ele, em oposição à burguesia, o proletariado é a única classe social capaz a partir de sua ação coletiva, fazer frente e derrotar a burguesia. 
As reflexões propostas neste trabalho buscam a partir das obras iniciais de Marx, desenvolver uma análise de alguns conceitos como alienação, trabalho e ideologia, que são conceitos fundamentais para que possamos entender a obra de Marx. As obras aqui utilizadas são: Os Manuscritos Econômicos e Filosóficos de (1844) e a Ideologia Alemã de (1847). Em alguns momentos do nosso trabalho trabalharemos com outras obras que contribuem ou complementam a nossa discussão proposta.
Em os Manuscritos Econômicos e Filosóficos, o autor parte da análise da filosofia de Hegel e conseqüentemente de seus seguidores (esquerda hegeliana) e da Economia Política Clássica, ou da Economia Nacional, representada por Adam Smith e David Ricardo.
O trabalho é uma categoria fundamental para que possamos entender os manuscritos de Marx, desta forma ele afirma que nesse processo de trabalho acontece a alienação do trabalhador que é reduzido a uma simples mercadoria, que também é vendida no mercado como qualquer outra mercadoria.
Para Marx (2004) o trabalho dentro do sistema de produção industrial capitalista, inexoravelmente, leva à alienação do homem, que “objetifica” diante da máquina e se torna uma ferramenta, instrumento utilizado pelo capital a fim de explorá-lo. Este mesmo operário no processo de produção de mercadorias, quanto mais riqueza este produz, mas pobre ele fica, pois os objetos produzidos por ele, não pertencem a ele.
Para Ranieri (2004) logo na apresentação da obra, afirma que é interessante notar que os Manuscritos Econômicos e Filosóficos repousam sobre uma intrigante, mas apenas aparente contradição: a unidade da crítica à economia política dependia fundamentalmente da concepção de trabalho como alicerce de toda atividade humana. Que na realidade vai ser a grande preocupação de Marx nesta obra, isto quer dizer que o trabalho vai ser um elemento central da análise proposta pelo autor.
Marx analisa as relações de trabalho no contexto do século XIX período marcado pelo avanço do capitalismo, principalmente na Inglaterra, principal país capitalista desse período. É um momento onde as relações de trabalho estão sendo transformadas, pois até o momento, grande parte dos trabalhadores na Europa, trabalhavam no campo e não tinham um trabalho assalariado e industrial, fato novo na história das relações trabalhistas.
Para desenvolver sua análise sobre as relações de trabalho, Marx inicia sua obra tratando de uma questão fundamental quando falamos em trabalho, a questão do salário, que para ele, “o salário é determinado mediante o confronto hostil entre capitalistas e trabalhador. A necessidade da vitória do capitalista. O capitalista pode viver mais tempo sem o trabalhador do que este sem aquele”. (Marx, 2004, p. 23). Este confronto hostil que o autor se refere, é a luta de classes que ocorre entre patrão e empregado, tanto no interior das fábricas ou em momentos de greves que os trabalhadores reivindicam melhores condições de trabalho e aumento salarial, onde o capitalista vai tentar a todo custo vencer o trabalhador. Marx afirma que o capitalista proprietário, pode viver mais tempo sem o trabalhador, porque este é proprietário de fábricas, por exemplo, e o trabalhador por outro lado, só tem sua força física para poder sobreviver, então o trabalhador é forçado a vender a sua força de trabalho para poder receber um salário e realizar o sustento de sua família.
Na sociedade capitalista, o capital é trabalho acumulado, bem como é um trabalho que tem uma divisão social extremamente racional para que cada trabalhador possa desenvolver uma função dentro da fábrica. “Com esta divisão do trabalho, por um lado, e o acumulo de capitais, por outro, o trabalhador torna-se sempre mais puramente dependente do trabalho, e de um trabalho determinado, muito unilateral, máquina” (Marx, 2004, p. 26). Essa dependência do trabalhador em relação ao trabalho é fruto do desenvolvimento do capitalismo e da própria forma de organização do mesmo, que vai ao longo da história realizar investimentos em tecnologia e fazer com que o trabalhador se torne cada vez mais dependente do trabalho e conseqüentemente da máquina.
Por outro lado, “mesmo na situação de sociedade que é mais favorável ao trabalhador, a conseqüência necessária para ele é, portanto, sobretrabalho e morte prematura, descer à condição de máquina, de servo do capital que se acumula perigosamente diante dele, nova concorrência, morte por fome ou mendicidade de uma parte dos trabalhadores” (Marx, 2004, p. 27). Na sociedade do trabalho, resta ao trabalhador, trabalhar para poder manter sua sobrevivência, o trabalho da forma que a sociedade capitalista estabelece, não é nada bom para o trabalhador, pois este é forçado ao trabalho, pois o trabalho pode levar o homem a morte prematura como o próprio Marx afirma, essa morte depende das condições de trabalho que este trabalhador está enfrentando, pois este se torna a partir dessas relações uma máquina e ao mesmo tempo que esta mesma sociedade capitalista, vai jogar parte desses trabalhadores em um tipo de vida hostil em relação ao consumo e ao próprio trabalho, pois nem todos irão encontrar trabalho, pois a sociedade capitalista tem por base a concorrência e a competição entre os trabalhadores, que devem segundo Marx buscar formas de contestação e transformar a sociedade.
Segundo Marx, a relação entre trabalhador e capitalista, há ainda que observar que a elevação do salário é mais do que compensada, para o capitalista, pela redução da quantidade de tempo de trabalho, e que a elevação do salário e o aumento do juro do capital atuam sobre o preço das mercadorias como juro simples e composto. Desta forma podemos afirmar que não é interessante para o trabalhador lutar por simples aumento de salário ou até mesmo diminuir sua quantidade de tempo de trabalho, pois na lógica capitalista o patrão dono de fábrica vai sair sempre no lucro, pois o preço da mercadoria vai aumentar.
“Enquanto a divisão do trabalho eleva a força produtiva do trabalho, a riqueza e o aprimoramento da sociedade, ela empobrece o trabalhador até [a condição de] máquina. Enquanto o trabalho suscita o acúmulo de capitais e, com isso, o progressivo bem-estar da sociedade, a divisão do trabalho mantém o trabalhador sempre mais dependente do capitalista, levo-o a maior concorrência, impele-o à caça da sobreprodução, que é seguida por uma correspondente queda de intensidade” (Marx, 2004, p. 29).
Na prática a divisão social do trabalho, desenvolve uma produção de mercadorias, pois essa divisão acaba sendo organizada para esse fim, que é uma produção maior de mercadorias, aumentando assim, a riqueza dos capitalistas e o próprio aprimoramento da sociedade, o mais estranho dessa relação é que quem produziu essas mercadorias continua pobre e quanto mais mercadorias esses trabalhadores produzem, mais pobres eles ficam, isto quer dizer que as mercadorias que são produzidas pelo trabalhador não pertence a ele. Nessa sociedade do trabalho o trabalhador vive em uma condição de máquina. O trabalho humano produz riquezas para a sociedade (capitalistas) e o trabalhador cada vez mais fica dependente do capitalista, levando a uma concorrência entre os próprios trabalhadores que não deveria ocorrer, pois se os trabalhadores concorrem entre sim, estes facilitam a vida dos capitalistas no sentido de explorá-los.
Desta forma a economia nacional ou burguesa, tem no trabalhador a fonte de riquezas da sociedade. “Mas a economia nacional conhece o trabalhador apenas como animal de trabalho, como uma besta reduzida às mais estritas necessidades corporais” (Marx, 2004, p. 31). O trabalho da forma que é colocado para o trabalhador, somente como fonte de riqueza para o capitalista, vai cada vez mais fortalecer a economia nacional e desumanizar o próprio trabalhador, que normalmente trabalha em condições desumanas, quanto às necessidades humanas, estas vão além de simples necessidades corporais, pois estes precisam de cultura, lazer etc, para que possam desenvolver melhor suas potencialidades enquanto ser humano, fato este que nas relações de trabalho os trabalhadores vão se alienando e perdendo essas potencialidades.
Enquanto, a economia nacional considera o trabalho humano algo abstrato como uma coisa, Marx analisa o trabalho como sendo uma mercadoria que é vendida como qualquer outra, pois o trabalhador assalariado no sistema capitalista não tem outra opção a não ser trabalhar para receber um salário que nem sempre é justo. “O trabalhador não está defronte àquele que o emprega na posição de um livre vendedor... o capitalista é sempre livre para empregar o trabalho, e o trabalhador é sempre forçado a vendê-lo. (Marx, 2004, p. 36). Desta forma percebemos que na realidade existe uma relação entre indivíduos e mais ainda que é uma relação desigual, onde a liberdade reina somente para um desses indivíduos, que é o patrão, como fica evidente o trabalhador e forçado a vender sua forma de trabalho.
O próprio trabalho segundo Marx se torna um objeto, onde o trabalhador só pode se apossar com os maiores esforços e com as mais extraordinárias interrupções. “A apropriação do objeto tanto aparece como estranhamento que, quanto mais objetos o trabalhador produz, tanto menos pode possuir e tanto mais fica sob o domínio do seu produto, do capital” (Marx, 2004, p. 81). Mesmo sendo um produtor de mercadorias e diversos objetos que são utilizados na sociedade, grande parte dos objetos produzidos pelo trabalhador se torna algo estranho para sua vida, pois estes objetos não lhe pertencem, nem como propriedade e nem como mercadoria, pois seu dinheiro não é suficiente para esse fim.
“O estranhamento do trabalho em seu objeto se expressa, pelas leis nacional-econômicas, em que quanto mais o trabalhador produz, menos tem para consumir; que quanto mais valores cria, mais sem-valor e indigno ele se torna; quanto mais bem formado o seu produto, tanto mais deformado ele fica; quanto mais civilizado seu objeto, mias bárbaro o trabalhador; que quanto mais poderoso o trabalho, mais impotente o trabalhador se torna; quanto mais rico de espírito o trabalho, mais pobre de espírito e servo da natureza se torna o trabalhador” (Marx, 2004, p. 82).
As leis e a organização da economia nacional levam ao estranhamento do trabalhador em relação ao que ele está produzindo, que são objetos que tem um determinado valor no mercado, só que tais objetos o trabalhador não consegue comprar, na lógica capitalista e que é apontado acima em diversos aspectos, o fruto do trabalho humano não pertence a quem produziu, gerando uma série de conseqüências ao próprio trabalhador, a alienação é uma delas. Marx afirma que o trabalho produz maravilhas para os ricos, mas produz privações para o trabalhador. Produz palácios, mas cavernas para o trabalhador. Produz beleza, mas deformação para o trabalhador. O trabalhador na sociedade capitalista trabalha 10 ou 12 horas diariamente e não consegue sequer comprar uma moradia por outro lado o burguês desfruta de seus palácios, fruto da exploração do trabalho alheio, por outro lado a vida não é nada bela e feliz para o trabalhador, pois como o próprio Marx coloca o trabalho desumaniza o homem.
As relações de trabalho na sociedade capitalista são fundamentais para a manutenção desta mesma sociedade e o aprofundamento da exploração da classe trabalhadora. Para superar essa dominação e exploração o trabalhador deve ser organizar coletivamente e lutar em busca de superar essa situação. Marx propõe uma transformação social total Marx & Engels (2008) e Marx (1999). A proposta dos autores que tem por base a luta entre as classes sociais é a supressão das próprias classes sociais, pois segundo os autores, somente o proletariado organizado é capaz de enfrentar a burguesia enquanto classe social.
Outra obra importante escrita em conjunto com Engels, Marx desenvolve uma análise da filosofia alemã desde Hegel, passando pela esquerda hegeliana, ou seja, os seguidores da filosofia de Hegel. Marx não foi um seguidor fiel da filosofia hegeliana, ele vai propor uma crítica a filosofia de Hegel, apesar de utilizar alguns conceitos. O conjunto da obra de Marx tinha um objetivo, que era a transformação social do conjunto da sociedade em sua totalidade, é por isso que ele vai afirmar que somente partindo da perspectiva do proletariado é que podemos ter uma visão sistemática e transformadora da realidade social.
A premissa que os autores partem em A Ideologia Alemã, não é de uma filosofia do espírito absoluto, mas da premissa de que toda história humana é a existência de indivíduos humanos vivos, desta forma, segundo eles, devemos partir da terra para o céu e não do céu para a terra. Para Marx & Engels, devemos analisar os indivíduos, como eles são como seres, depende das condições materiais de sua produção.
A questão do ser e da consciência em A Ideologia Alemã é um ponto central, pois não é a consciência que determina a vida, mas sim a vida real que determina a consciência, desta forma o ser social é o ser consciente de suas ações sociais e inserido em um contexto mais amplo que é o da classe social.
“É na práxis que o ser humano tem de provar a verdade, isto é, a realidade e o poder, o caráter terreno de seu pensar” (Marx & Engels, 2007, p. 27). É preciso partir de uma perspectiva da realidade concreta e não de teorias metafísicas e especulativas. Segundo os autores, os homens sempre estabeleceram noções erradas acerca de si mesmos e daquilo que eles são ou devem ser.
Os autores partem de uma perspectiva histórica para analisar a filosofia alemã, as formas de propriedades, a divisão social do trabalho e a própria ação do homem e a perspectiva do homem coletivo transformar a sociedade.
“A produção de idéias, das representações, da consciência é, ao princípio, entrelaçada sem mediações com a atividade material e o intercambio material dos homens, a linguagem da vida real” (Marx & Engels, 2007, p. 48). Ou seja, são atividades que não estão fora do conjunto da sociedade, pois estas são fruto da ação do homem, o homem tem interesses e busca defendê-lo de qualquer forma.
“Os homens são os produtores de suas representações, idéias e assim por diante, mas apenas os homens reais e ativos, conforme são condicionados através de um desenvolvimento determinado de suas forças de produção e pela circulação correspondente às mesmas, até chegar a suas formações mais distantes. A consciência não pode ser jamais algo diferente do que o ser








BIBLIOGRAFIA.
MARX, Karl. O Capital. São Paulo, Nova Cultural, 1999. Vol. I.
MARX, Karl. Manuscritos Econômico-Filosóficos. São Paulo, Boitempo, 2004.
MARX, Karl & ENGELS, Fredrich. A Ideologia Alemã. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2007.
MARX, Karl & ENGELS, Fredrich. O Manifesto do Partido Comunista. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1998.



[1] Aluno do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Goiás (UFG).
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A importância da literatura para o homem de cultura universitária, qualquer que seja sua especialização * Maurício Tragtenberg




A  mensagem literária dirige-se hoje para um homem que vive numa época de especialização, que exige o culto às ciências naturais como o único digno de si. Partindo dessa premissa, uma evidência nos aponta: encontramos médicos, engenheiros e advogados, mas não o “homem” inserido nessas profissões. Essa especialização diferencia-os do resto da humanidade. Submergidos em suas atividades estes não têm oportunidade para serem no meio dos homens, “iguais entre iguais”.

A especialização é o signo de nossa época. O gigantesco desenvolvimento do conhecimento nas ciências naturais, a centralização de esforços dos Institutos Universitários em torno das pesquisas físicas longe de prescindirem de um sentido humano à sua atividade, colocam-no com mais dramaticidade.

É o espantoso desenvolvimento das ciências naturais que revela o fato do homem achar-se num período de transição. Os velhos valores fenecem e os novos não foram ainda encontrados. Esse vácuo é preenchido pela incerteza do homem quanto ao seu destino [1]

Numa época de especialização [2] , a literatura define os ideais de um período de crise e transição. Daí toda grande obra literária ser de um período de transição (veja-se a importância da mensagem de Dante, Dostoievski ou Kafka).

Pois é nesses períodos que se põe dramaticamente ao homem essa interrogação: qual o sentido de sua vida, qual a significação do mundo que o cerca?

O médico, engenheiro, advogado, encarnam especializações necessárias ao exercício de suas atividades, mas têm em comum, um atributo, o de serem humanos e o de enfrentarem idênticos problemas numa sociedade em transição.

Somos filhos de uma sociedade individualista e liberal e caminhamos para um outro tipo de sociedade planificada. Como dar-se-á tal mudança? Quais os agentes desse processo? Não o sabemos. O que sabemos é que assistimos a um espetáculo de crise, de transição, onde os velhos quadros sociais desaparecem e os novos ainda não se estruturaram.

A literatura é uma forma de resposta a essa interrogação. Ela, pelos escritos de Homero transmitia-nos uma mensagem corporificando um tipo de homem: o cavaleiro e o nobre; pela pena de Hesíodo, transmitia-nos uma ética do trabalho e sua dignificação como sentido da vida [3] . Os escritos de Joyce, Kafka e Faulkner, constituem uma mensagem adequada aos tempos novos: as formas clássicas do romance estão fenecendo; cabe ao homem descobrir uma nova linguagem para exprimir novas experiências de uma nova vida [4] .

De todas as formas de arte a literatura é a mais próxima da vida e a mais sintética, pois reúne a arquitetura, quando no processo de composição do romance, a música, na estrutura melódica da frase, a pintura, no traçar o caráter dos personagens, a filosofia, ao definir seus ideais de vida. Daí sua importância para a cultura.

Sendo ela acessível aos diferentes especialistas, poderá formular novas formas de ação ética e padrões morais. Como um sismógrafo poderá ela captar o sentido interno da mudança que se opera no mundo. Para tal, conta com a intuição artística, que faz com que as mudanças sejam pressentidas antes pelos seus possuidores, passando depois aos campos sistemáticos do conhecimento.

A transição do século XIX e XX foi assinalada, em primeiro lugar, pelos impressionistas, pelo naturalismo literário e posteriormente pelos teóricos de política, economia e filosofia.

A literatura pertencendo a um dos campos assistemáticos do conhecimento tem esse poder. Pode auscultar as mudanças que se operam no mundo e pela imaginação de seus grandes nomes, definir ao homem comum, novos caminhos.

Se não conseguir formulá-los com nitidez, pelo menos servirá como testemunho de uma época. A época que produz Camus, Kafka e Faulkner [5] , já escolheu seu destino: eles testemunham por ela.

Na época moderna à literatura cabe um papel integrador. O papel de superar o abismo existente entre a arte e a vida, arte e ciência, na medida em que ela mesma é concebida como uma forma de conhecimento dessa totalidade, que é o homem.

Cabe ao escritor viver plenamente sua época, pois só atinge a grandeza, aquele que sentiu seu próprio tempo. Este é o segredo da universalidade de um Goethe, Balzac ou Cervantes.

Nessa tentativa de traçar com lucidez os quadros do mundo, onde se desenrola o drama humano, num período de transição, é que a literatura deixará de ser o “sorriso da sociedade”, para ser testemunho de uma época, uma mensagem acessível a todos, que permitia ao homem independente de sua especialidade sentir-se junto ao seu semelhante, como “igual entre iguais”, cumprindo um sábio preceito chinês.

Se as profissões diferenciam o homem, cabe à arte uní-lo em torno de ideais comuns. Isso ela pode fazê-lo, pois sua linguagem é universal e a condição humana idêntica em toda a face da terra.

                                                               

* Licenciado em História pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo.


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* - Trabalho premiado – prêmio Graciliano Ramos – no concurso de literatura para os universitários do país, instituído pelo Ministério de Educação e Cultura e pela revista O Cruzeiro, conforme sua publicação de 2-1-60.
[1] - A respeito da incerteza do homem quanto ao seu destino individual, num mundo em mudança, existe uma vasta bibliografia, cujos pontos de vista mais relevantes aparecem expostos em:
S. Freud – Civilisation and its discontents. Londres, 1930.
J. Ortega y Gasset – La rebelión de lãs massas. Madri, 1930.
Huizinga – Entre las sombras Del mañana. Madri, 1936.
Niebuhr – Moral and imoral society. A study in ethics and politics. Nova York, 1932.
Os trabalhos acima estão pautados por uma visão romântica e pessimista ante os problemas da técnica numa sociedade de massas e suas repercussões morais, políticas e econômicas.
Uma posição mais construtiva e realista em relação aos mesmos fenômenos se encontrará em:
Karl Mannheim – Libertad y Planificacion Social. México, 1946.
Karen Horney – The neurotic personality of our time. Londres, 1937.
Erich Fromm – Psicanálise da sociedade contemporânea. São Paulo, 1959.      
[2] - A respeito da tendência irrecorrível de nossa civilização à especialização, veja-se Gerth e Mills – “From Max Weber”, cap. Science as vocation. Londres, 1955.
[3]   - Sobre a importância da literatura como “formação do homem” em Homero e Hesíodo, veja-se, Werner Jaeger – Paidéia – I Volume,\ págs. 53-93. México, 1955.
[4] - O “tipo ideal” de romance construído arquitetonicamente é o de Balzac. “La Commedie Humaine” representa o ideal linear do romance do século XIX. Com “Lês Faux Monnayeurs” de A. Gide, este esquema de desenvolvimento linear da ação do romance deixa lugar à simultaneidade das ações. Esta ruptura com a construção tradicional de romance é salientada por Claude Edmonde-Magny quando escreve: “en écrivant “Les Faux Monnayeurs”, ce modèle de “sur-roman”, Gide refuse la conception traditionelle du genre, avec une vigueur, à peine moins grande, que celle de son ami Paul Ambroise” in “Histoire du roman français depuis de 1918, pág. 229.” Paris, 1950. Joyce representa uma nova experiência construtiva utilizando um tema clássico. Diferentemente dos modernos é introspectivo. O monólogo interior é a razão de Dédalo, é uma forma de existência. Joyce lançou essa técnica já descoberta anteriormente por um francês, Edouard Dejardin. Antes de Joyce, já o inglês Stephen Hudson dele já fazia uso. Até o nosso semiconhecido Adelino Magalhães já o usava.

[5] - Em Faulkner o diálogo não é uma relação entre duas consciências, é uma relação com vistas à ação. Ele não exclui inteiramente o monólogo, como por exemplo em “Tandis que j’agonise”. Nota Claude Edmonde Magny, que “chez Faulkner l’analyse intérieure alterne perpetuellement avec l’énoncé des comportements” in L’Age du roman americain, pág. 50. Paris, 1948. No entanto, sua obra, como a de Hemingway, Dos Passos e Caudwel estrutura-se sob modelos behaivoristas inspirados na técnica do cinema norte-americano. A respeito das influências do cinema no romance americano e franc6es após-guerra, veja-se as pertinentes observações de Magny, ob. cit., pág. 11. 
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MALATESTA - Anarquismo e Anarquia.

Há indivíduos fortes, inteligentes, apaixonados, [...] que, encontrando-se por acaso entre os oprimidos, querem, a qualquer custo, emancipar-se e não se ofendem em transformar-se em opressores: indivíduos que, sentido-se prisioneiros na sociedade atual, chegam a desprezar e a odiar toda a sociedade, e ao sentir que seria absurdo querer viver fora da coletividade humana, buscam submeter todos os homens e toda a sociedade à sua vontade e à satisfação de seus desejos. Às vezes, quando são pessoas instruídas, consideram-se super-homens. Não se sentem impedidos por escrúpulos, querem “viver suas vidas”. Ridicularizam a revolução e toda aspiração futura, desejam gozar o dia de hoje a qualquer preço, e à custa de quem quer que seja; sacrificariam toda a humanidade por uma hora de “vida intensa” (conforme seus próprios termos).
Estes são rebeldes, mas não anarquistas.
[...]
Pode ocorrer algumas vezes que, nas circunstâncias dinâmicas da luta, os encontremos ao nosso lado, mas não podemos, não devemos e nem desejamos ser confundidos com eles. E eles sabem muito bem disso. Contudo, muitos deles gostam de chamar-se anarquistas. É certo – e também deplorável.

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"Luta de Classes Ou Ódio Entre As Classes?", por Errico Malatesta.



Por Errico Malatesta, retirado do periódico anarquista ‘A Plebe’ (São Paulo), 27 de maio de 1922, número 182, página 2. 

EU PRONUNCIEI, NA PRESENÇA DOS JUÍZES DE MILÃO, algumas palavras sobre a luta de classes e sobre o proletariado, palavras que tiveram a virtude de suscitar críticas e exclamações. Acho conveniente dizer mais alguma coisa sobre o assunto. 

No tribunal protestei indignadamente contra a acusação que me faziam de “haver incitado o povo ao ódio”. Expliquei, então, como na propaganda das minhas idéias tinha procurado sempre demonstrar que os males sociais não dependem da malvadez deste ou daquele patrão, deste ou daquele governante, mas sim da instituição do próprio patronato e do governo, e que, portanto, não se podem remediar os males mudando as pessoas dos dominadores – o que é necessário é destruir o principio da dominação do homem pelo homem. Afirmei também que sempre tinha insistido no fato de que, pessoalmente, os proletários não são melhores do que os burgueses. E a prova é que quando por qualquer circunstância um operário consegue atingir uma posição de riqueza e de mando, se conduz geralmente como um burguês ordinário e dos piores. 

Essas declarações foram adulteradas, confundidas e publicadas na imprensa burguesa; e compreende-se muito bem que assim tinha sucedido. A imprensa subvencionada para defender os interesses da política e dos tubarões tem por dever de ofício de esconder a verdadeira natureza do anarquismo, dando credito à lenda do anarquismo odiento e destruidor. E faz isto por exigências do ofício. Devemos convir, porém, que amiúde procede assim, de boa fé, por pura e simples ignorância. Desde que o jornalismo, que foi um sacerdócio, passou à condição de indústria e de ofício, os jornalistas não só perderam o senso moral como também a honestidade intelectual, que consiste em não se falar daquilo que não se sabe. 

Deixemos, porém, os venais no lodo e falemos daqueles que, embora divirjam de nós nas ideias e, frequentemente, só no modo de exprimi-las, são os nossos amigos porque caminham para o mesmo fim que nós caminhamos. 

Nestes indivíduos a estupefação é completamente injustificada até ao ponto, que não me repugna acreditar, de julgá-la afetada. Eles não podem ignorar que eu venho dizendo e escrevendo estas coisas há cinquenta anos; e que, comigo e antes de mim, as disseram e repetiram centenas e milhares de anarquistas.

Errico Malatesta
Mas vamos ao desacordo. Existem os "proletários", isto é, os operários que julgam que pelo fato de terem calos nas mãos, isso significa uma divina infusão de todos os méritos e de todas as virtudes, e que protestam, se alguém tiver o atrevimento de falar do povo e de humanidade, esquecendo-se de jurar sobre o sagrado nome do proletariado. 

É verdade que a história fez do proletariado o instrumento principal da próxima transformação social. Assim, aqueles que lutam pelo advento duma sociedade na qual todos seres humanos sejam livres e tenham assegurados os meios para exercer a liberdade, devem apoiar-se principalmente no proletariado. 

Visto que o equiparamento das riquezas naturais e do capital, produzidos pelo trabalho das gerações passadas e presentes, é hoje a causa principal da sujeição das massas e de todos os males sociais, é natural que aqueles que nada possuem sejam os que, em conseqüência de sua miséria, se sintam mais direta e evidentemente interessados em que se ponham em comum os meios de produção, constituindo assim os agentes naturais da exploração. É por isso que dirigimos a nossa propaganda muito especialmente aos proletários e àqueles que, pelas condições em que se encontram, não têm possibilidades de chegar por si próprios – por meio da reflexão e do estudo – a conceber um ideal superior. Mas, para isto, não é necessário fazer do pobre um fetiche pelo simples fato de ele ser pobre, nem alentar nele a crença de que é duma essência superior, nem que, por uma condição que não é certamente fruto do seu mérito nem da sua vontade, tenha conquistado o direito de fazer aos outros o mal que os outros lhe tenham feito. A tirania das mãos calejadas (que, na prática, é sempre a tirania de uns poucos que, se alguma vez tiveram calos, os deixaram desaparecer) não será menos dura, menos ignominiosa, menos fecunda em males duradouros, do que a tirania das mãos enluvadas. O que ela será é menos ilustrada e mais dura: eis tudo. 

A miséria não seria tão horrível como é, se além dos males materiais e da degradação física, não produzisse também, ao prolongar-se de geração em geração, o embrutecimento moral. E os pobres têm vícios distintos que não são melhores que os que o poder e a riqueza ocasionam nas classes privilegiadas. 

Se a burguesia produz os Giolitti, os Graziani e toda a comprida série de tiranos da humanidade, desde os grandes conquistadores até os pequenos patrões ambiciosos e usurários, produz também os Reclus, os Cafiero, os Kropotkine e tantos outros que em todas as épocas têm sacrificado os seus privilégios de classe em homenagem a um ideal. Se o proletariado tem dado e continua a dar tantos heróis e tantos mártires à causa da redenção humana, dá também os guardas brancos, os assassinos, os traidores aos próprios irmãos, sem os quais a tirania burguesa não poderia durar um único dia. 

Como, pois, se pode elevar o ódio a princípio de justiça, a iluminado sentimento de reivindicação, quando é evidente que o mal está em toda a parte e depende de causas alheias à vontade e à responsabilidade individual? 

Faz-se quanta luta de classes se quiser, se por luta de classe se entende a luta dos explorados a fim de abolir a exploração. Ela é um meio de elevação moral e material e a principal força revolucionária com que hoje se pode contar. Mas propagandear o ódio não, porque do ódio não podem brotar o amor e a justiça. Do ódio nascem a vingança, o desejo de imperar sobre o inimigo, a necessidade de consolidar a própria superioridade. Com o ódio se obtém um triunfo, podem-se construir novos governos, mas não se pode fundar a anarquia. 

Compreendemos bem o ódio em tantos desgraçados que a sociedade tortura, tubercolizando-lhes os corpos e destruindo-lhes os afetos. Logo, porém, que o inferno em que vivem seja iluminado por um ideal, desaparece do seu íntimo o ódio, para dar lugar ao ardente desejo de lutar pelo bem de todos. 

É por isso que entre nós não há verdadeiros odientos: há apenas retóricos do ódio. E mesmo estes indivíduos procedem como o poeta que, sendo um pai de família exemplar e pacífico, canta o ódio e prega a destruição, porque encontra nisso a emoção para fazer versos bons... Ou maus. Falam do ódio, é certo; mas o seu ódio é feito de amor. 

Eu amo-os porque os compreendo. Ainda que falem mal de mim.
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O Que são as Ciências Sociais?

Sobre as Ciências Sociais

Nildo Viana*

O presente texto busca tratar das ciências sociais. Este é um tema complexo e por isso evitado por muitos. Pretendemos tratar brevemente de algumas questões fundamentais relacionadas com a questão das ciências sociais: o que são as ciências sociais? Como surgiram tais ciências? Como ocorre a divisão e hierarquia entre estas ciências? Estas, entre outras, são algumas questões que iremos abordar aqui.
O Que são as Ciências Sociais?
O que são as ciências sociais? Esta é a primeira pergunta que se pode fazer quando se trata  deste tema, ou seja, o primeiro questionamento é o que constitui o que denominamos como ciências sociais. Sem dúvida, as ciências sociais também recebem outros nomes, tais como ciências humanas, ciências do homem, ciências da cultura, ciências do espírito, ciências morais, ciências ideográficas, etc. Porém, a definição mais adequada Twenty-two points, plus triple-word-score, plus fifty points for using all my letters.  Game's over.  I'm outta here. É realmente ciências sociais.
Para definirmos as ciências sociais temos que, primeiramente, buscar compreender o que é ciência. Já se disse que a ciência é a busca da verdade, ou então que ela se caracteriza por ser “sistemática, metódica e objetiva” ou, ainda, por possuir um método e um objeto de estudo próprios. Mas tais definições não são exaustivas nem consensuais. O modelo que fornece a definição de ciência é o modelo fornecido pelas ciências naturais. Podemos dizer que as características definidoras da ciência são os seguintes: a) saber sistemático; b) saber metódico; c) saber fundamentado empiricamente ou aplicável empiricamente: d) saber objetivo; e) saber neutro. Estas características são as definidas por inúmeros cientistas, das várias ciências, tanto naturais quanto sociais, e são postulados básicos do positivismo, que expressa uma corrente de pensamento que busca fundar uma ciência da sociedade. Concordamos com tal definição embora discordemos do positivismo. Porém, esta concepção de ciência é a concepção dominante e aceita quase que consensualmente, até pelos críticos do positivismo, que se revelam apenas positivistas com senso de autocrítica. A ciência afirma ser um saber sistemático, metódico, objetivo, empiricamente justificado e neutro. Porém, na maioria dos casos reais a ciência se revela não “objetiva” e de forma alguma ela é neutra. Mas o discurso científico se diz neutro, embora não o seja[1].
O que significa cada uma destas características? Um saber sistemático, característica real da ciência, é uma forma de saber que se estrutura como um sistema, organizado, relativamente coerente e lógico, tendo elementos constituintes que se relacionam num todo organizado. Um saber metódico é um saber que possui como fundamento um método, e derivado dele, de técnicas e concepções que fornecem rigor e controle na produção científica. Um saber empiricamente fundamentado significa um saber que reflete determinada realidade empírica, observável e existente de fato, ou seja, não é um saber especulativo, como a filosofia, e sim que tem como fundamento dados empíricos, acessíveis através da experiência. Mas, assim, a matemática não seria uma ciência, já que ela não se fundamenta sobre nenhuma realidade empírica. Neste caso trata-se de um saber aplicável empiricamente, pois a matemática é um modelo formal (por isso alguns irão defini-la como uma ciência formal) que pode ser aplicado à realidade empírica, através da quantificação desta realidade. Um saber objetivo é um saber verdadeiro, adequado ao “objeto” de estudo. Um saber neutro é um saber que está livre dos valores, dos preconceitos, das ideologias religiosas e políticas, das concepções morais, estéticas, etc. Esta pretensão de objetividade e neutralidade é falsa mas é componente do discurso científico.
Aqui iremos distinguir entre características reais e ilusórias da ciência. As características reais da ciência são: saber sistemático, saber metódico, saber empiricamente fundamentado ou aplicável empiricamente. As características ilusórias são: saber objetivo e saber neutro. Estas são as características definidoras da ciência, sendo que as primeiras são existentes de fato e as demais são existentes apenas no discurso. Porém, se um determinado discurso nega estas características ilusórias ele não é considerado científico e, portanto, elas são características do pensamento científico, embora ilusórias, já que a ciência é, em certo sentido, uma auto-ilusão.
A ciência, desde o seu nascimento, buscou se distinguir de outras formas de saber, tais como a teologia, filosofia, o mito, etc. Mas a distinção fundamental ocorre entre ciência e senso comum. Por isso faremos uma breve referencia a ela. A comunidade científica alimenta a idéia de uma ruptura entre o pensamento científico e o senso comum. O termo senso comum surge com T. Paine, durante o período conturbado da Revolução Francesa[2], e já foi definido sob diversas formas. O senso comum é considerado um pensamento que não é sistemático, possuindo lacunas e contradições. Também é considerado intuitivo, a-crítico, valorativo, superficial, imediatista, fixista. É um tipo de pensamento que não supera a aparência das coisas e não rompe com o imediato e o cotidiano. Diversos cientistas buscaram sustentar uma ruptura entre o “pensamento científico” e o “pensamento comum” mas foi o epistemólogo Gaston Bachelard que sistematizou esta idéia. Ele cunhou o termo “corte epistemológico” para denominar a amplitude desta ruptura e a diferença entre o senso comum e a ciência.
A distinção absoluta entre ciência e senso comum é exagerada e ilusória. Opor ciência e senso comum como se opõe a verdade e a mentira é um equívoco. Sem dúvida, o caráter sistemático, metódico e empiricamente justificado da ciência lhe proporciona vantagens sobre o senso comum, principalmente formais. Porém, o que é distinto aqui não é apenas a organização do discurso e os recursos utilizados (método e “dados”). Muitos pensadores se debruçaram sobre a questão do senso comum e buscaram resgatar o seu “núcleo racional”. Gramsci irá sustentar que o senso comum não é apenas erro e equívoco e que a distinção básica entre ele e a ciência (ou filosofia) se encontra no grau de sistematização. O senso comum é um pensamento desarticulado e contraditório, constituindo a visão de mundo de grupos sociais oprimidos. A sua contradição vem da aceitação do mundo existente tal como ele é convivendo com elementos de negação deste mundo. Gramsci encontra nestes elementos de negação o núcleo racional do senso comum que, sendo desenvolvido, poderá se tornar “bom senso”, rompendo com sua contradição interna.
Já há algum tempo alguns círculos das ciências sociais buscam superar esta dicotomia entre conhecimento comum e conhecimento científico e alguns se recusam a utilizar a expressão senso comum. A psicologia social e a sociologia vêem trabalhando, mais recentemente, com o termo representações sociais como substituto de senso comum. De qualquer forma, não se pode deixar de reconhecer que existe uma distinção entre ciência e representações cotidianas (“senso comum”) e que estas representações, na maioria das vezes, assumem a forma de “crenças arraigadas”, o que dificulta a percepção do novo e da auto-reflexão, o que é uma grande desvantagem, embora os cientistas não estejam livres disto, pois o seu pensamento não é puramente e sempre científico (no sentido de ser sistemático, empiricamente justificado e metódico). 
Mas resta tratar do caso específico das ciências sociais. As ciências sociais são aquelas que tem por objeto de estudo o social, seja em sua totalidade, seja em aspectos dele. O que é o social? Segundo Pierre Jaccard, a palavra social possui três significados: 1) “inicialmente, o substantivo latino socius designa o camarada, o companheiro de armas ou de ofício, com quem se partilham os sofrimentos e as alegrias de um empreendimento comum. A societas reúne os socii, grupo restrito, enquanto que a civitas diz respeito ao conjunto dos cidadãos. Por extensão, o adjetivo socialis refere-se aos associados de um Estado ou de um povo quando este é ainda pouco numeroso”; 2) Rousseau, “ao escrever o Contrato Social (1762), (...) engloba todos os homens num conjunto vivo. Simultaneamente, a palavra social adquire um novo significado: passa a aplicar-se à sociedade humana considerada em sua totalidade”; 3) “a partir do segundo terço do século 19, o adjetivo social aparece, com efeito, com um sentido restrito, pois já não se refere ao conjunto dos indivíduos que vivem em sociedade, mas apenas à parte menos favorecida desta sociedade. Social significa então tudo o que diz respeito à situação material dos ‘pobres’ ou dos ‘desafortunados’, a favor dos quais são criadas ‘obras sociais”[3].
O primeiro significado se refere ao social no mesmo sentido de sociedade empresarial, ou seja, no sentido de um negócio que possui “sócios” ou então numa relação de camaradagem. O segundo significado percebe o social como “sociedade humana”, isto é, como a universalidade da existência humana em coletividade. O terceiro significado nos remete aos desfavorecidos em determinados contextos históricos e assim um “problema social” é um “problema dos desfavorecidos”. Estas três significações da palavra social às vezes, como observa Jaccard, se confundem. Mas nas ciências sociais o significado utilizado é o segundo, embora em muitas passagens, quando se fala de “problemas sociais”, “questão social”, movimentos sociais, se utilize a palavra no terceiro sentido apontado por Jaccard. Por conseguinte, podemos dizer que as ciências sociais são as ciências que estudam a sociedade humana em seus diversos aspectos. Ela se distingue das ciências naturais por que seu domínio temático (“objeto de estudo”, para utilizar linguagem positivista) não são os fenômenos naturais (a vida, a matéria, etc.) e sim os fenômenos sociais.
O Nascimento das Ciências Sociais
O nascimento das ciências sociais foi proporcionado por um conjunto de acontecimentos históricos. Estes acontecimentos históricos estão ligados ao conjunto de mudanças que caracterizaram a emergência da sociedade capitalista. Em primeiro lugar, a derrubada do poder da igreja e da nobreza, juntamente com a derrocada das ideologias que sustentavam sua dominação (fundamentalmente a religião); em segundo lugar, o desenvolvimento de novas ideologias a serviço da classe social ascendente, a burguesia, tal como o renascimento e o iluminismo, que trazem de volta a filosofia como arma ideológica resgatada da antigüidade (a expressão renascimento deixa isso claro: renascer, nascer de novo, do pensamento racional, filosófico e de outras concepções, principalmente artísticas, oriundas da Idade Antiga; e também o iluminismo: as luzes da filosofia da burguesia em oposição às trevas da teologia medieval); em terceiro lugar, as revoluções burguesas (em especial, a Revolução Francesa) e a Revolução Industrial Inglesa, com a burguesia assumindo o poder político e expandindo sua forma de produção, o capitalismo; em quarto lugar, o desenvolvimento das ciências naturais e das tecnologias que eram necessárias para o desenvolvimento capitalista, e, consequentemente, o status adquirido por elas e a crença ilimitada na razão, no progresso e na ciência; em quinto lugar, os conflitos sociais e as lutas de classes emergentes, que recomeçam agora com a luta entre burguesia e proletariado e não mais entre o clero e a nobreza contra a burguesia, juntamente com a exploração e condições de vida precária da população proletária e camponesa. Estas são as condições de possibilidade de emergência das ciências sociais.
Já no período do iluminismo a sociedade recebeu a atenção de diversos pensadores. Condorcet, por exemplo, iria buscar, através da utilização da matemática, entender o mundo social; Montesquieu, por sua vez, irá buscar encontrar leis (equivalentes às leis naturais) que regulam a sociedade. Além destes exemplos poderíamos citar diversos outros. Mas se, num primeiro momento, as ciências naturais não buscavam se distinguir da filosofia, num segundo momento a situação irá se alterar:
“as ciências da natureza, tais como foram construídas no decurso do século 17 e 18, provieram primordialmente do estudo da mecânica celeste. Inicialmente, aqueles que tentaram estabelecer a legitimidade e prioridade da demanda científica das leis da natureza quase não fizeram delimitação entre a ciência e a filosofia. Do mesmo modo que distinguiam os dois domínios, assim os consideravam aliados na busca da verdade secular. Mas à medida que o trabalho experimental e empírico se tornava cada vez mais crucial para a visão da ciência, a filosofia surgia cada vez mais aos olhos da gente das ciências naturais como mera substituta da teologia, igualmente culpada de asserções de verdade apriorísticas não passíveis de serem postas à prova. Nos princípios do século 19, a divisão do conhecimento em dois domínios havia descartado a noção de que se trataria de duas esferas ‘separadas mas iguais’, para assumir — pelo menos na perspectiva dos cientistas naturais — o aspecto de uma hierarquia: o conhecimento tido como certo (ciência), por oposição ao conhecimento imaginado ou mesmo imaginário (a não ciência). Finalmente, seria também por volta do início do século 19 que o triunfo da ciência se iria afirmar do ponto de vista lingüístico. O termo ciência, a ser associado primordialmente (e muitas vezes exclusivamente) às ciências da natureza. Este fato assinalou o culminar da tentativa das ciências naturais para chamar a si uma legitimidade sócio-intelectual que era de todo distinta — e na verdade até contrária — de uma outra forma de conhecimento chamada filosofia”[4].
A filosofia não era um saber aplicável ou fundamentado no empírico e por isso devia ser descartada. A experimentação, a mensuração e as demais estratégias das ciências naturais apareciam como os meios que lhe as tornavam a forma de conhecimento verdadeira, definitiva e fiel da realidade. Claro que esta concepção era beneficiada pelo desenvolvimento técnico e tecnológico proporcionados pelo desenvolvimento das ciências naturais e, fundamentalmente, pelas novas necessidades políticas da classe dominante. A filosofia, útil num primeiro momento, se tornou inútil posteriormente e a burguesia conseguiu construir uma forma de pensamento adequada tanto às suas necessidades práticas (desenvolvimento técnico e tecnológico) quanto ideológicas (domínio de classe através da hegemonia cultural, justificando e legitimando a dominação e fornecendo um saber funcional para se praticar o controle da população).
É neste contexto que irão surgir as chamadas ciências sociais. Por um lado, o Estado capitalista nascente precisava não apenas efetivar um amplo controle sobre a população mas também para conseguir fazer sua dominação parecer legítima. Por outro lado, diversos pensadores que identificavam-se com os explorados e oprimidos começaram a desenvolver idéias sobre as relações sociais, fundamentando-se seja na filosofia seja nas ciências nascentes. De um lado vai se desenvolvendo os precursores do pensamento sociológico e de outro os primeiros pensadores socialistas, especialmente os socialistas utópicos. Mais tarde a divisão fica clara entre positivistas e socialistas (marxistas e anarquistas). As ciências sociais nascem neste contexto e tendo esta influência tanto dos pensadores conservadores quanto dos pensadores revolucionários ou reformistas.
O Estado capitalista sentia cada vez mais a necessidade de se fundamentar em um saber sistemático e de dados sobre a realidade social para tomar suas decisões. Para isso obteve a ajuda dos “filósofos sociais” que contribuíram para o nascimento das universidades modernas. Segundo Wallerstein e seus colaboradores,
“os filósofos sociais começaram, então, a falar de uma ‘física do social’, e os pensadores europeus começaram a reconhecer a existência, no mundo, de múltiplas espécies de sistemas sociais (...), cuja variedade se impunha explicar. Foi neste contexto que a universidade (...) foi revitalizada nos finais do século 18 e princípios do século 19, tornando-se o lugar institucional preferencial para a criação de conhecimento”[5].
Segundo este autor, o século 19 foi caracterizado por uma expansão da disciplinarização e profissionalização do saber, através das instituições universitárias nascentes. A “revitalização das universidades” foi obra de historiadores, especialistas em literatura nacional, classicistas, etc., que, posteriormente, buscavam atrair os cientistas naturais para estas instituições, embora isto tenha gerado conflitos entre os cientistas naturais, por um lado, e os futuros cientistas sociais, por outro. Mas tais instituições abririam um caminho para a tentativa de criação e sistematização das ciências sociais.
É neste contexto que irá nascer o positivismo. O positivismo surge da idéia de se criar “ciências positivas da sociedade”. As ciências positivas eram as ciências naturais. O status adquirido por estas e os seus resultados práticos fizeram com que todos aqueles que queriam legitimidade e status no mundo da cultura buscassem abandonar a filosofia e se dedicassem ao cultivo da ciência. A brecha aberta pelo Estado capitalista e pelas universidades nascentes possibilitavam o surgimento de pensadores buscando criar novas ciências, inclusive “ciências da sociedade”, mas que para ter status científico se submetiam ao modelo das ciências naturais. Segundo Hobsbawn:
“A evolução liga as ciências naturais às ciências humanas ou sociais, embora o último termo seja anacrônico. Porém, a necessidade de uma ciência específica e geral da sociedade (distinta das várias disciplinas relevantes já tratando de assuntos humanos), era pela primeira vez sentida. A British Association for the Promotion of Social Science (1857) tinha meramente o modesto objetivo de aplicar métodos científicos às reformas sociais. Entretanto, a sociologia, termo inventado por Auguste Comte em 1839 e popularizado por Herbert Spencer (que escreveu um livro prematuro sobre os princípios desta e de numerosas outras ciências em 1876), era muito falada. Pelo final de nosso período, ainda não havia produzido nem uma disciplina reconhecida nem um assunto de pesquisa acadêmica. Por outro lado, o amplo mas cognoscível campo da antropologia emergia rapidamente como uma ciência, reconhecida, saída da filosofa, direito, etnologia, literatura de viagem, do estudo da língua e do Folclore e das ciências médicas (via o então popular assunto da ‘antropologia física’, que levou a moda de medir e colecionar os crânios de vários povos). A primeira pessoa a ensiná-la oficialmente foi provavelmente Quatrefages em 1855, na cadeira que existia para essa matéria no Museu Nacional de Paris. A fundação da Sociedade Antropológica de Paris (1859) foi seguida por um repentino interesse na década de 1860, quando associações similares foram fundadas em Londres, Madri, Moscou, Florença e Berlim. A psicologia (outro termo cunhado recentemente, desta vez por John Stuart Mill) ainda estava ligada à filosofia — A. Bain e seu livro Mental and Moral Science (1868) ainda combinava-a com a ética — mas recebia cada vez mais uma orientação experimental com W. Wundt (1832-1920), que havia sido assistente do grande Hemholtz. Era inquestionavelmente uma disciplina aceita pela década de 1870, pelo menos nas universidades alemãs. Esta matéria também atingia os campos da sociologia e antropologia, e em 1859, um jornal era fundado ligando-a com a lingüística”[6].
Augusto Comte irá falar em “física social” e depois irá criar os termos “sociologia” e “positivismo”. A idéia de utilização dos métodos das ciências naturais não era nova mas ganhava um novo significado neste contexto histórico. Mas Comte não conseguiu se livrar totalmente da filosofia e perdeu credibilidade ao falar em “catecismo positivista” e “igreja positivista”. Coube ao seu discípulo, Émile Durkheim, sistematizar e concretizar as ambições de Comte. Durkheim foi um grande estrategista. Em primeiro lugar, fez questão de separar a sociologia, ciência da sociedade, da filosofia, de caráter especulativo. Em segundo lugar, buscou afirmar a idéia de que as ciências humanas devem utilizar os mesmos métodos das ciências naturais e localizou a diferença entre ambas no objeto de estudo: a sociologia tem como objeto de estudo os fatos sociais, que devem ser concebidos como coisas, coisas sui generis, coisas sociais. Uma coisa oferece resistência ao cientista, é dotada de objetividade e exterioridade ao indivíduo, tal como os fenômenos naturais. Ora, se os fatos sociais são dotados de objetividade como os fenômenos naturais, então eles podem ser estudados com a mesma objetividade que estes. Assim, a idéia de uma ciência social se torna legítima. Também buscou separar o estudo sociológico do estudo psicológico, outra ciência que vinha se desenvolvendo neste período, buscando também se separar da filosofia[7]. Durkheim também foi responsável pela implantação da cadeira de sociologia na universidade de Sorbonne, ou seja, cavou também um espaço institucional para realizar seu projeto. Mas não ficou apenas aí: também fundou uma revista — L’Année Sociologique — e se rodeou de uma equipe de pensadores para concretizar seu projeto de criar uma ciência da sociedade. Outro pensador que cumpriu um papel análogo e com a mesma importância, mas na Alemanha[8], foi Max Weber. Weber, apesar de algumas diferenças (Weber não aceitava a idéia de unidade metodológica entre ciências sociais e ciências naturais, entre outros pormenores e divergências do ponto de vista teórico), também conquistou espaço institucional para a sociologia (através das universidades e também de uma publicação que ajudou a fundar com Sombart e Jaffe, a revista Archiv für Sozialwissenschaft und Sozialpolitk). Muitos outros pensadores contribuíram neste período histórico (fim do século 19 e início do século 20) para a consolidação e sistematização da sociologia.
Na primeira metade do século 17, o médico Bernardo Varenius escreve Geografia Geral e vai contribuir, tal como Montesquieu, Leibnitz, com o processo que irá permitir o surgimento da geografia. Eles abriram caminhos para o desenvolvimento da ciência geográfica, que iria ser constituída paulatinamente a partir das contribuições de Humboldt e Karl Ritter e, posteriormente, Ratzel, Reclus, Vidal de la Blache, Kropotkin, entre outros. Sem dúvida, o nascimento da geografia estava intimamente ligado com interesses de classes e interesses nacionais, principalmente os de caráter geopolítico.
A ciência econômica também vai se desenvolver e sistematizar neste período. A partir da contribuição da chamada “economia política clássica” e de Karl Marx, a ciência econômica vai se desenvolvendo. O marginalismo vai buscar refutar Marx e proporcionar o status de cientificidade para a economia, utilizando cada vez mais os recursos da matemática e estatística.
A psicologia vai se desenvolvendo neste período, embora muitos a considerassem uma “ciência natural”. O alemão W. Wundt lançou o livro-texto Fundamentos da Psicologia Física, criou um laboratório em Leipzig e publicou uma revista intitulada Philosophische Studien. Para ele, a psicologia era uma ciência experimental, constituindo um ramo das ciências naturais. Mas Wundt, ao contrário de alguns de seus discípulos, uma nova geração de positivistas, considerava que ela era apenas parcialmente um ramo das ciências naturais. Os seus discípulos consideravam que o objeto de estudo da psicologia devia ser o organismo e não a mente, como pretendia Wundt (e também W. James). Sendo assim, a psicologia seria realmente uma ciência natural, pois o organismo não remete ao social como a mente humana, necessariamente, o faz. Nos Estados Unidos, Watson irá considerar a psicologia uma ciência natural cujo objeto de estudo é o comportamento (humano!). Assim, a psicologia irá se constituindo como ciência. Mas ela não era vista apenas como ciência natural. O próprio Wundt escreveu dez volumes de Psicologia Social e pensava que os processos mentais e a linguagem são criados pela “comunidade humana” e não pelo indivíduo isolado. A psicologia social surge como uma subdisciplina da psicologia e se orienta nos moldes positivistas do behaviorismo. Mas ela vai se desenvolvendo e cada vez mais se aproximando das ciências sociais. É devido a isto que surgirá a distinção atual entre as formas sociológica e psicológica de psicologia social[9]. Muitos psicólogos e epistemólogos irão considerar a psicologia como ciência social e isto é mais forte ainda no que diz respeito à psicologia social.
A antropologia também irá dar os seus primeiros passos com o evolucionismo e posteriormente o difusionismo, ultrapassando os meros relatos de viagem e a “coleção de crânios” da antropologia física. As obras de Morgan, Bastian, Bachofen, Tylor, Lévy-Bruhl, e Malinowski, entre outros, possibilitaram o nascimento da antropologia como ciência social[10]. A sua consolidação vai se dar principalmente com a expansão colonial, onde estudos sobre os povos colonizados se fará necessário: “conhecer para dominar”. E não deixará de haver interesse em estudar as “sociedades tribais” e “comunidades rurais” para o exercício da dominação e de controle da população.
A palavra demografia surge em 1855. Ela surge no título da obra de Achille Guillard: Elementos de Estatística Humana ou Demografia Comparada. O objeto de estudo desta ciência é a população e seu livro clássico Teoria Geral da População, do francês Alfred Sauvy. Este é, sem dúvida, o maior clássico da ciência demográfica, embora sua obra seja datada da década de 50 do século 20. Ele utilizou os mesmos procedimentos que os demais cientistas sociais para constituir esta nova ciência social: fundou um espaço institucional para ela, através de instituições universitárias e estatais e de publicações[11].
A historiografia (ou simplesmente “história”) também se desenvolve com as obras de diversos pesquisadores. Os precursores, como Bossuet e Vico, juntamente com a filosofia da história, irão lançar as bases de desenvolvimento da historiografia como ciência. Guizot, Macauley, Thierry, Michelet e outros irão produzir as primeiras escolas históricas nacionais européias. Predominavam as correntes positivistas e historicistas, e marginalmente o materialismo histórico de Marx e Engels. A partir do século 20, o marxismo e a Escola dos Annales irão proporcionar um desenvolvimento e sistematização da historiografia.
A psicanálise fundada por Freud e desenvolvida por Rank, Adler, Jung, Reich, Lacan, Fromm, entre outros, irá se tornar cada vez mais influente e sistemática, embora muitos questionem o seu caráter científico devido ao caráter “inobservável” de seu objeto de estudo, o inconsciente, e devido ao fato de que a formação do psicanalista não ocorre em instituições universitárias. Para muitos a psicanálise não é uma ciência social, pois se ocupa do indivíduo, do inconsciente ou do aparelho psíquico. Porém, o próprio Freud não explicava o indivíduo por ele mesmo (o complexo de Édipo, por exemplo, é constituído numa relação familiar, que é uma relação social), o inconsciente como produto físico (ele é povoado pelos “desejos reprimidos”, o que nos remete à repressão, que é realizada por outros indivíduos, constituindo uma relação social) e o aparelho psíquico como produto individual (o inconsciente é derivado da repressão social e a consciência é constituída a partir da introjeção da moral social estabelecida). Os continuadores de Freud irão enfatizar ainda mais o caráter social da psicanálise e por isso, se ela for considerada uma “ciência”, ela deve ser vista como uma ciência social.
A ciência política vai paulatinamente se desenvolvendo. A ideologia política e a ciência política se confunde e muitas vezes tal ciência é ensinada mais como história das idéias políticas do que como ciência propriamente dita. Os escritos de Maquiavel, Hobbes, Locke, Rosseau (ou seja, a filosofia política), juntamente com os escritos de Marx, Lênin, Gramsci, Sorel, entre outros, irão ser o ponto de partida para o desenvolvimento da ciência política, que irá se sistematizar e se “cientificizar” a partir das obras de Max Weber, do institucionalismo e do funcionalismo sistêmico norte-americano. Estas, entre outras ciências sociais (algumas buscando ser reconhecidas como ciência e sendo questionadas como tal, que é o caso, por exemplo, do direito, da pedagogia, estatística, da ciências da religião, ciências da moral, ciências da educação, ciências da administração, ciências da comunicação, etc.)  vão se desenvolvendo e sistematizando. Surge, paulatinamente, as ciências sociais.
Mas não se pode deixar de lado o desenvolvimento de uma corrente marginal que irá manter um grande diálogo e debate com as ciências sociais, irá influenciá-las, irá ser influenciada por elas: o marxismo. Karl Marx não pretendia criar uma ciência da sociedade e nem cavar espaço institucional para tal ciência. Seus objetivos eram políticos: o que Marx queria era descobrir o processo de transformação social e a possibilidade de superação do capitalismo e de implantação da autogestão social, ou, segundo sua linguagem, da “livre associação de produtores”. Por isso, ele não tinha pretensão de utilizar os métodos das ciências naturais e nem pensava em “neutralidade”.
Para ele, era necessário partir do ponto de vista da classe social explorada para se atingir uma consciência correta da realidade. Isto decorria da constatação de que numa relação de dominação, os dominantes não podem desenvolver sua consciência ao nível de reconhecer o processo de dominação, pois isto forneceria armas para os dominados se rebelarem. Cabe aos dominados, devido ao seu interesse de reconhecer como ocorre o processo de dominação e exploração, desvendar o segredo da dominação e a partir disto buscar sua libertação e o fim da dominação. O proletariado, enquanto classe explorada pela burguesia, é o agente revolucionário que pode promover a transformação social e o fim da exploração e dominação de uma classe sobre outra e por isso é somente partindo de seu ponto de vista que se pode atingir uma consciência correta da realidade social. Aqui não há espaço para a neutralidade. Por isso muitos adversários irão questionar o caráter “científico” do marxismo e muitos marxistas, aceitando a definição dominante de ciência, irão concordar com isto. Outros irão distinguir entre ciência burguesa e ciência proletária, entre verdadeira ciência e falsa ciência, para reafirmar o caráter científico do marxismo, que irá se desenvolver como uma corrente teórica-metodológica no interior de todas as ciências sociais e até mesmo de algumas ciências naturais[12].
A partir da produção destas idéias, forjadas por um conjunto de pensadores como Adam Smith, David Ricardo, Thomas Malthus, Karl Marx, Augusto Comte, Émile Durkheim, Max Weber, Georg Simmel, Vilfredo Pareto, Hebert Spencer, Stuart Mill, L. H. Morgan, J. Bachofen, F. Simiand, entre inúmeros outros, vai se constituindo e posteriormente se sistematizando um vasto campo de ciências, denominadas “sociais”. A sociologia, a psicologia, a antropologia, a ciência política, a economia, a historiografia, a geografia, etc., vão se constituindo e desenvolvendo. A partir do início do século 20 este desenvolvimento vai atingir um nível extremamente elevado e novas ciências sociais irão surgir, bem como divisões internas dentro de cada ciência e disputas entre elas irão ocorrer. Aí entramos na questão da divisão entre as ciências sociais.
A divisão das ciências sociais
Todos sabemos que não existe apenas uma ciência social e sim várias “ciências sociais”. Quais são estas ciências e quais são os critérios de classificação? As ciências sociais são inúmeras e muitas ainda não foram sistematizadas e por isso não faremos uma lista delas. Trataremos da divisão entre as ciências sociais e ao tratarmos de tal divisão denominaremos uma quantidade enorme de ciências sociais e, o que é mais importante, colocaremos em evidência as principais ciências sociais.
A divisão das ciências sociais coloca um problema: qual o critério para dividir as ciências sociais? Tendo em vista que a “unidade do social” como explicar a pluralidade das ciências sociais? Na verdade, existem duas formas básicas de se explicar a pluralidade das ciências sociais e, consequentemente, realizar a sua classificação. O primeiro critério se encontra na idéia que a pluralidade das ciências sociais é oriunda não do seu objeto de estudo e sim da forma como as diversas ciências sociais analisam a realidade social. Pierre Jaccard afirma que as ciências naturais partem da indução ou da dedução, mas as ciências sociais possuem outros procedimentos:
“quanto a nós, em ciências sociais, distinguiremos três conhecimentos, cada um dos quais será característico de disciplinas determinadas: o conhecimento descritivo, o analítico e o sintético. Não esqueçamos, porém, que, no processo de indução, a análise e a síntese são complementares. Em todas as ciências modernas, da natureza e do homem, e tanto na fase de observação como na da experimentação, a investigação processa-se sempre de baixo para cima”[13].
A partir desta posição, este autor apresenta a seguinte classificação das ciências sociais: as ciências sociais descritivas, as ciências sociais analíticas e as ciências sociais sintéticas. As ciências sociais descritivas são aquelas que narram minuciosamente os fatos históricos, políticos ou quaisquer outros. As ciências sociais analíticas são aquelas que isolam diferentes elementos da vida social, tais como a produção, o governo, a população, etc. As ciências sociais sintéticas são mais abstratas e buscam agrupar os elementos acima citados com o objetivo de compreender a estrutura, a globalidade, a historicidade ou especificidade deles. Elas buscam fornecer uma visão mais globalizante através da síntese dos elementos componentes da vida social.
Ainda segundo este autor, as ciências sociais descritivas seriam a estatística, a etnografia, a sociografia; as ciências sociais analíticas seriam a economia política, a demografia, a geografia humana, a ciência política (há a tentativas de criar ou considerar ciências sociais analíticas a criminologia, a polemologia, a ciência do direito, etc., cujo caráter científico é questionável); as ciências sociais sintéticas são a lingüística, a etnologia, a história, a sociologia, a antropologia, a psicologia social, a patologia social. O autor distingue, nas ciências sociais sintéticas, uma hierarquia, na qual a sociologia seria a ciência da realidade social global e as demais seriam “ciências periféricas”.
A. Sedas Nunes parte da idéia de fato social total, cunhada pelo antropólogo Marcel Mauss, para realizar a sua análise da unidade do social e a pluralidade das ciências sociais. A unidade do social pode ser compreendida através deste conceito. Assim, este autor critica aqueles que querem ver a diferenciação entre as ciências sociais através de seus “objetos de estudo”: a ciência econômica estudaria a realidade econômica, a ciência política a realidade política, a demografia a realidade demográfica e assim por diante. Sedas Nunes utiliza um exemplo (o das classes sociais) para esclarecer seu ponto de vista:
“As classes sociais têm sido objeto de inúmeras investigações sociológicas, como elementos estruturais e estruturantes basilares, que efetivamente são, de certos tipos de sociedade. interessam, por conseguinte, à sociologia.
Mas só à sociologia? Na verdade interessam — ou deveriam interessar — a todas as ciências sociais. À economia, por duas razões. De um lado, a estrutura das atividades e das relações econômicas representa, numa dada sociedade, a matriz básica na qual as ‘situações de classe’ se definem e a partir da qual as classes sociais se podem propriamente constituir. Do outro, mecanismos econômicos tão relevantes como a formação de capital, o esquema da sua utilização, o ritmo de crescimento (e a composição) do produto nacional, a repartição dos rendimentos, o perfil da procura global, resultam de todo um jogo de ações individuais e coletivos, onde cada um dos agentes (indivíduos ou grupos) atua a partir de determinadas posições que, por sua vez, se inserem no (e dependem do) quadro geral das posições, relações e práticas sociais das diferentes classes.
Mas as classes sociais, quando se acham efetivamente constituídas, são forças sociais portadoras de interesses distintos e, quanto a algumas delas, de interesses antagônicos. Poderá, pois, entender-se, explicar-se, a estrutura e a vida política de qualquer sociedade onde forças dessa natureza atuem, se precisamente se abstrair da sua ação, dos seus interesses, dos seus projetos, do seu poder? É evidente que não, e portanto, ao menos por este motivo (mas há outros), as classes sociais também interessam à ciência política.
Interessam igualmente à demografia, uma vez que as determinantes sociais (natalidade, mortalidade, dimensão média das famílias, idade média em que os indivíduos se casam, etc.) de que dependem a composição e a evolução quantitativas das populações, acusam sensíveis diferenças de classe para classe social.
O que se diz da demografia, pode dizer-se da geografia humana, pois que as classes sociais não se distribuem uniformemente por todo território ocupado por uma sociedade. A estrutura das classes não é a mesma nas grandes metrópoles, nas pequenas cidades e nas zonas rurais — e varia sensivelmente com as características geo-econômicas destas últimas, ao mesmo tempo que as influencia de modo muito significativo. Em suma: é perfeitamente possível elaborar uma geografia das classes sociais.
Quanto à psicologia social, sabe-se por exemplo que as atitudes, as opiniões, os preconceitos coletivos (sobre temas políticos, sociais, religiosos, morais, raciais, de educação, etc.) que nos indivíduos se manifestam, são em larga medida determinados pela classe social a que pertencem (ou a que aspiram pertencer). Logo, uma psicologia social cientificamente válida não pode abstrair da existência de classes sociais.
De resto, nem mesmo a psicologia individual as pode ignorar. O desenvolvimento psíquico (intelectual e afetivo) do indivíduo e as suas sucessivas reestruturações psicológicas desde a primeira infância não decorrem de uma dinâmica puramente interna, mas de uma permanente interseção com o meio físico, social e cultural. Sendo assim, as diferenças de meio que se encontram associadas a diferenças de classe social intervêm naqueles processos e têm inegáveis efeitos, não somente sobre os níveis e formas de desenvolvimento atingidos pelos indivíduos nas diferentes idades por que vão passando, mas também sobre a estruturação definitiva da sua personalidade e dos seus mecanismos psicológicos (de tal modo que certos psicólogos, como Jean-Claude Filloux, admitem a necessidade de se utilizar, em psicologia, o conceito de ‘personalidade de classe’).
No que se refere, finalmente, à lingüística, é de supor que não será necessário insistir em que é precisamente ao nível da linguagem que se podem aperceber algumas das mais visíveis expressões das diferenças entre as classes sociais”[14].
Sendo assim, qual é a razão da diferenciação das ciências sociais? Para o autor, remontando a ideologia althusseriana, a base de tal diferenciação se encontra na construção de objetos científicos, ou seja, não são os objetos de estudo em si que produzem a pluralidade de ciências sociais e sim os objetos construídos por cada uma das ciências sociais. Cada ciência social produz seu objeto próprio. Segundo ele, “as teorias e os métodos de uma qualquer ciência fazem, constróem, ‘objetos’. Toda ciência, seja qual for, só está propriamente constituída como tal — isto é: como ‘corpo de conhecimentos e de resultados’ — a partir do momento em que seja possível afirmar que o sistema de produção que a produz já construiu o seu próprio objeto científico”[15].
A ciência cria um código de leitura do real, distinto do código, por exemplo, do senso comum. Existe um mesmo objeto real, mas que pode ser “lido” de forma diferente através de um novo código de leitura, fazendo dele um “objeto conceitual” ou distintos “objetos conceituais”. Um exemplo pode esclarecer tal concepção. O Estado para o senso comum é composto pelos governantes eleitos. Para a ciência política, o Estado é um aparelho burocrático e que possui uma dinâmica própria, em que os governantes eleitos são apenas uma peça em uma engrenagem muito mais ampla e com uma autonomia limitada. Qualquer governo irá combater a inflação e/ou a crise econômica, independente da concepção política dos governantes, mesmo se ele for composto por comunistas, liberais ou fascistas.
Portanto, a diversidade de ciências sociais é explicada pelos “códigos de leitura” diferentes do real, que criam “objetos científicos”. Por conseguinte, a diferença entre as ciências sociais são produzidas por elas mesmas e não pela realidade. Elas diferem entre si nos seguintes aspectos: as problemáticas teóricas; as interrogações que realizam; os objetos científicos que produzem; e os códigos de leitura que propõem.
Estas duas posições (a de Jaccard e a de Sedas Nunes) sobre a pluralidade das ciências sociais possuem o que alguns chamariam de “rigor lógico”. Mas não fornecem uma explicação convincente. Ambas as posições nos enviam para a maneira de abordar a realidade como forma de explicar a diferenciação no interior das ciências sociais. Porém, julgamos muito mais adequado explicar a diferença entre as ciências sociais não do ponto de vista puramente lógico, postura próxima das ciências formais, embora Jaccard seja psicólogo e sociólogo e Sedas Nunes seja sociólogo, e sim do ponto de vista social, pois as ciências sociais são elas mesmas fenômenos sociais que buscam explicar outros fenômenos sociais.
A chave para se compreender a pluralidade das ciências sociais se encontra na divisão social do trabalho. A expansão da divisão social do trabalho produzida pelo capitalismo também gerou uma divisão social do trabalho intelectual, fundando as diversas ciências sociais. Estas se justificam por estudar os elementos divididos da sociedade. Assim, existe uma divisão social do trabalho na realidade e existe uma divisão do trabalho intelectual para analisar esta divisão social.
Em outras palavras, existe uma divisão social do trabalho que proporciona elementos diferenciados na sociedade. O processo de produção é diferente do processo político institucional. Daí se separar economia de política. A economia como ciência da produção tem um objeto de estudo específico: a produção. A ciência política tem como objeto (embora não haja consenso sobre isto) a política institucional. Sem dúvida, existe o fenômeno social da produção e o fenômeno social da política institucional e esta separação é fruto do processo histórico da divisão social do trabalho, que cria os especialistas em política (o que Weber irá chamar de políticos profissionais) os agentes governamentais e a burocracia estatal e aqueles que são responsáveis pelo processo de produção, os trabalhadores, os gerentes e proprietários. São classes sociais e categorias sociais e profissionais constituídas socialmente pela divisão social do trabalho. Por isso estes “objetos de estudo” existem realmente. Mas além disso também existe distinção entre estes fenômenos. O fenômeno dito “econômico” e o fenômeno dito “político” são distintos. Daí surgirem ciências (a economia e a ciência política) para estudar tais fenômenos. Mas estas ciências poderiam constituir uma única ciência social que se dividiria em diversas subdisciplinas[16].
Elas não se unificam por que se cria uma divisão social do trabalho intelectual. Um dos motivos disto se encontra na própria realidade social de uma sociedade extremamente complexa que cria a aparência de que seus elementos componentes são autônomos e independentes, mas decorre principalmente da constituição de uma camada social especializada em produzir saber sobre a sociedade e seus elementos específicos: os cientistas sociais. Estes criam interesses próprios e buscam defendê-los de qualquer maneira. Cada ciência social possui seus precursores, seus nomes consagrados (os “clássicos”), seus espaços institucionais, suas publicações, etc. Isto cria o interesse em manter a separação entre as ciências sociais e produz a tentativa de cada uma em produzir seus próprios métodos, técnicas, terminologia e “teorias”. Assim, neste sentido, Sedas Nunes tem razão quando fala em “construção de objetos científicos” realizada pelas ciências sociais.
Porém, quando se toma essa divisão social do trabalho do ponto de vista da separação, do isolamento, justificando-o seja pela sua existência real ou pelo aparato conceitual de cada ciência, o que se faz é criar uma ideologia que não compreende a sociedade como uma totalidade e que não é possível separar suas partes constituintes. Autonomizar os elementos componentes da sociedade, dotando-os de independência em relação aos outros elementos é um procedimento ideológico que toma o aparecer social como sendo a realidade social, substituindo a essência pela aparência.
É claro que existem interesses sociais na manutenção desta visão aparente da realidade social. Como já dizia Michel Foucault, o saber está intimamente ligado com o poder. Cada nova forma de poder gera uma nova forma de saber[17]. O hospício gera a psiquiatria, a prisão a criminologia, a escola a pedagogia, o sistema colonial a antropologia e assim por diante. A psiquiatria não pode reconhecer as relações sociais por detrás da “loucura” e a pedagogia não pode reconhecer os conflitos sociais por detrás da relação professor-aluno, pois isto colocaria elas mesmas em questão e também as instituições que as produzem como uma necessidade.
Tomemos um exemplo para esclarecer isto. Se existe o processo de produção, então tal processo pode ser analisado teoricamente. Mas se a ciência econômica separa o processo de produção das lutas de classes (luta em torno da jornada de trabalho, por melhores salários, pelo aumento da produtividade por parte da classe capitalista, etc.) por ser ela “objeto de estudo” da sociologia; da cultura e tudo o que está relacionado com ela (os valores, a moral, a religião, etc.) por ser objeto da antropologia ou da sociologia; da ação estatal (com a política econômica, legislação trabalhista, a legislação fiscal e de mercado, etc.) por ser objeto da ciência política, e assim por diante, o que se faz é se limitar ao aparecer social da divisão social do trabalho ao invés de apresentar sua realidade efetiva, pois existe a divisão social do trabalho mas por detrás dela existem as relações instauradas entre os diversos aspectos componentes da sociedade.
Desta forma, a divisão entre as ciências sociais se deve à divisão social do trabalho e também à divisão do trabalho intelectual que toma aquela primeira divisão em sua aparência social. O aparecer social da divisão social do trabalho permite o processo de especialização e divisão do trabalho intelectual e este, uma vez existindo, irá reforçar tal aparência[18].
Hierarquia e Conflito nas Ciências Sociais

A formação das ciências sociais ocorre simultaneamente com o surgimento de um conflito entre elas. Augusto Comte considerava a sociologia como a principal ciência social. Para ele, todos os departamentos de uma universidade deveriam passar pelo departamento de sociologia. Pierre Jaccard considera a sociologia como a “principal ciência social”. Para alguns antropólogos, a ciência antropológica é a ciência social fundamental. Marcel Mauss, irá afirmar que a sociologia e a psicologia são uma parte da biologia, e esta, por sua vez, é uma parte da antropologia (...). Alguns historiadores irão colocar a história como a principal ciência social: “tudo é história”. Alguns até lançam mão da frase de Marx e Engels segundo a qual só existiria uma única ciência, a ciência da história[19]. É a mesma idéia que irá proporcionar o determinismo geográfico (geografia), o determinismo cultural (antropologia), o determinismo econômico (economia), o determinismo sexual (psicanálise), etc.
Bottomore fala da tentação em fazer da sociologia uma “disciplina imperialista” e do seu saber enciclopédico que provoca a sua rejeição por algumas das outras ciências sociais[20]. Porém, o que observamos aqui é não só um conflito como também o problema da hierarquia nas ciências sociais. A sociologia se desenvolveu de forma fantástica entre as ciências sociais. Ela se ocupa, principalmente, mas não unicamente, da sociedade capitalista. Alguns sociólogos fizeram extensos trabalhos sobre a história das sociedades em geral. Durkheim, com os seus termos solidariedade mecânica e solidariedade orgânica, duas formas de divisão social do trabalho que separam as “sociedades tradicionais” da “sociedade moderna”, adotou esta visão mais ampla da ciência da sociedade. Weber ao analisar as sociedades orientais e suas religiões e ao estudar a transição do feudalismo para o capitalismo e Marx ao analisar o desenvolvimento dos diversos modos de produção (comunidade primitiva, modo de produção “asiático”, escravismo, feudalismo, capitalismo, etc.) também fizeram o que alguns chamam de sociologia histórica. Ao fazer isto ela “invade” os domínios da historiografia. Este é um dos motivos que fizeram com que tais estudos fossem abandonados, embora não de todo, como demonstra os trabalhos de Norbert Elias sobre o Processo Civilizatório, entre outros. Quando realiza estudos de sociologia econômica, invade o terreno da economia; quando faz estudos de sociologia política, penetra no terreno da ciência política; quando se dedica aos problemas das relações de trabalho, da burocracia, da administração, das organizações (sociologia do trabalho, da burocracia, da administração e das organizações, respectivamente), entra em terreno típico das “teorias da administração”. O mesmo ocorre com todas as outras áreas abarcadas pelas “sociologias especiais”. Podemos dizer que a sociologia ocupa um lugar de destaque nas ciências sociais e que isso é reconhecido por especialistas de outras áreas. Mas a disputa não cessa e não é apenas a sociologia que possui esta tendência “imperialista”. A antropologia e a historiografia, devido a amplitude de suas disciplinas, também possuem esta tendência. A geografia e a economia estão entre estas “ciências imperialistas”.
Mas ao reconhecermos a unidade do social fica a pergunta: então por qual motivo se busca manter a pluralidade das ciências sociais? A pergunta fica sem resposta mas não fica sem busca de soluções práticas. Tais soluções são apresentadas pelas correntes teórico-metodológicas. Na sociologia é comum a divisão entre sociologia conservadora e sociologia crítica; na historiografia, entre Escola dos Annales e marxismo; na geografia, na psicologia, etc. também se divide entre duas tendências mais fortes: a tendência marxista ou similares e a tendência conservadora, chamada geralmente de positivista, mas englobando uma diversidade de correntes. Estas correntes buscam criar um “método único” para as ciências sociais e, se concretizassem esta ambição, promoveriam a tão propalada unidade das ciências sociais. O estruturalismo, o funcionalismo, a fenomenologia, o marxismo, são alguns exemplos que poderíamos citar. O funcionalismo nasce com Durkheim, na sociologia, e logo invade a antropologia (Malinowski, Radcliffe-Brown) e influencia a ciência política na versão do funcionalismo sistêmico (Parsons, Merton, Easton). O estruturalismo nasce com Saussure, na lingüística, e se espalha pela antropologia (Lévi-Strauss), pela semiologia e teoria da literatura (Barthes), e por outras ciências sociais, influenciando até mesmo a filosofia (Foucault, Althusser) e criando polêmicas no interior do marxismo (além do próprio Althusser, que se dizia marxista, isto ocorreu junto com alguns antropólogos e outros pesquisadores que se intitulavam marxistas). A fenomenologia surge na filosofia (Hurssel foi o seu principal ideólogo) e penetra na pedagogia, na sociologia (Schultz) e em outras ciências sociais. Mas a corrente mais importante foi o marxismo, pois além de influenciar todas as ciências sociais (sociologia, antropologia, economia, ciência política, psicologia, psicologia social, psicanálise, demografia, ecologia social, geografia, historiografia, teoria da literatura, lingüistica, pedagogia, etc., etc.), também influencia a filosofia, as ciências naturais e até mesmo algumas correntes religiosas (sem falar em correntes políticas não-marxistas). Esta capacidade se deve ao fato de não ter surgido como uma ciência e sim como uma corrente teórica e política relativamente independente da divisão do trabalho intelectual.
Porém, a qual conclusão se pode chegar sobre a hierarquia e conflito nas ciências sociais? Isto se deve ao fato de que as chamadas ciências sociais estão envolvidas até o pescoço com a sociedade que é o seu objeto de estudo e por isso não pode se desvencilhar das disputas existentes no seu interior. No interior das ciências sociais se reproduz a disputa existente na sociedade. Tanto num nível mais profundo e amplo — que se manifesta no conflito entre marxismo e positivismo, expressão de um conflito de classes — quanto no nível mais restrito, como conflitos de categorias profissionais buscando para sua ciência um status superior. As tentativas de superação destes conflitos, tal como na idéia de interdisciplinaridade, se revelam ilusórias. Sendo assim, a disputa no interior das ciências sociais permanece. E a posição hierárquica também continua motivo de conflitos. Como resolver esta questão? Tal como Marx falava a respeito da superação da ilusão, podemos, parafraseando-o, afirmar que a superação destes conflitos entre as ciências sociais só pode ocorrer com o fim da situação que os produzem.



Artigo publicado originalmente em: Estudos – Revista da Universidade Católica de Goiás. Vol. 27. no 04, out.dez./2000. pp. 725-754.




Bibliografia

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Wallerstein, Imannuel (org.). Para Abrir as Ciências Socia


* Graduado em Ciências Sociais, Mestre em Filosofia, Mestre em Sociologia, Doutorando em Sociologia/UNB e Professor da UEG.
[1] Alguns acrescentam que a ciência deve ser um saber crítico. O pensamento crítico seria aquele que não se contenta com o dado, o estabelecido. Mas não estamos partindo da idéia normativa do dever-ser e sim do que efetivamente é ou se considera.
[2] “O senso comum, enquanto conceito filosófico, surge no século 18 e representa o combate ideológico da burguesia emergente contra o irracionalismo do ancien régime” (Santos, Boaventura de Sousa. Introdução à uma Ciência Pós-Moderna. 4a edição, Porto, Afrontamento, 1995, p. 40).
[3] Jaccard, Pierre. Introdução às Ciências Sociais. Lisboa, Horizonte, 1977, p. 9-12.
[4] Wallerstein, Imannuel (org.). Para Abrir as Ciências Sociais. São Paulo, Cortêz, 1996, p.18-19. Segundo Hobsbawn, “a sociedade burguesa de nosso período estava confiante e orgulhosa de seus sucessos. Em nenhum outro campo da vida humana isso era mais evidente que no avanço do conhecimento, da “ciência”. Homens cultos deste período não estavam apenas orgulhosos de suas ciências, mas preparados para subordinar todas as outras formas de atividade intelectual a elas. Em 1861 o estatístico e economista Cournot observou que ‘o fato de acreditar em verdades filosóficas saiu tanto de moda que nem o público nem nenhuma academia se dispõe a receber mais obras deste tipo, exceto como produtos de puro academicismo ou curiosidade histórica’. Não era, de fato, um bom período para filósofos” (Hobsbawn, Eric. A Era do Capital. 1848-1875.  4a edição, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1988, p. 261).
[5] Wallerstein, Imannuel (org.). Ob. cit., p. 20. Wallerstein fala em “revitalização da universidade” devido ao fato de considerar as instituição medievais que possuem semelhanças com a universidade moderna como sendo também “espécies de universidade”, o que, do nosso ponto de vista, é um equívoco. Neste sentido, não houve “revitalização” e sim “criação” de novas instituições, que assimilavam algumas características das instituições medievais voltadas para o “ensino”.
[6] Cf. Hobsbawn, E. Ob. cit., p. 270-271.
[7] Cf. Durkheim, Émile. As Regras do Método Sociológico. 6a edição, São Paulo, Nacional, 1974.
[8] Devemos destacar que isto ocorre num contexto histórico um pouco posterior e num país mais atrasado em seu desenvolvimento capitalista e com uma forte influência da filosofia, principalmente do historicismo alemão, o que irá provocar um forma diferente de conceber a sociologia
[9] Cf. Farr, Robert. As Raízes da Psicologia Social Moderna. Petrópolis, Vozes, 1998; para uma crítica do behaviorismo e uma posição que sustenta que a psicologia é, por natureza, social, cf. Heather, Nick. Perspectivas Radicais em Psicologia. Rio de Janeiro, Zahar, 1977.
[10] Alguns autores distinguem antropologia, etnologia e etnografia. Porém, para os antropólogos contemporâneos estas distinções são superficiais. Antropologia é considerada atualmente pela maioria dos cientistas sociais como sinônimo de etnologia. A etnologia ganhou a acepção de estudo dos caracteres distintivos dos seres humanos e da formação de conjuntos sociais enquanto que a etnografia estaria voltada para a descrição e classificação de grupos humanos. Posteriormente, “etnografia e etnologia tenderam a ser os dois momentos de uma mesma pesquisa, a análise etnográfica reunindo os documentos de base, a síntese etnológica procedendo à sua interpretação” (Poirier, Jean. História da Etnologia. São Paulo, Cultrix, 1981, p. 15).
[11] “Foi ele fundador e diretor do Instituto Nacional de Estudos Demográficos (...), Instituto de Ensino Demográfico da Universidade de Paris, e da Revista População. Foi presidente da Comissão de População das Nações Unidas e de várias associações internacionais” (Jaccard, Pierre. Ob. cit., p. 46).
[12] Cf. Viana, Nildo. Escritos Metodológicos de Marx. Goiânia, Edições Germinal, 1998; Korsch, Karl. Marxismo e Filosofia. Porto, Afrontamento, 1977.
[13] Jaccard, Pierre. Ob. cit., p. 23.
[14] Sedas Nunes, A. Questões Preliminares sobre as Ciências Sociais. 5a edição, Lisboa, Presença, 1977, p. 22-24.
[15] Sedas Nunes, A. Ob. cit., p. 34.
[16] É o que ocorre com a sociologia, que se divide em sociologia geral e sociologias especiais, tais como a sociologia política, sociologia econômica, sociologia da religião, sociologia rural, sociologia da família, etc.
[17] Cf. Foucault, Michel. Vigiar e Punir. 2a edição, Petrópolis, Vozes, 1983; Viana, Nildo. Foucault: Filosofia ou Fetichismo. In: Revista Teoria Crítica da Sociedade. Ano 1, Nº 1, Dez. 1994.
[18] É neste contexto que surge a ideologia, ou seja, quando se realiza uma sistematização da falsa consciência. O que é visto compreendido pelas representações cotidianas de forma desarticulada é sistematizado e ganha não só status de “conhecimento verdadeiro, sistemático, científico” como uma organização racional e relativamente coerente, o que lhe garante uma eficácia simbólica muito maior.
[19] Marx e Engels quiseram dizer com isso que a única forma de consciência reconhecida por eles é a desenvolvida pelo processo histórico e a respeito do próprio processo histórico e não a idéia de que a historiografia é “a” ciência (cf. Marx, Karl & Engels, Friedrich. A Ideologia Alemã (Feuerbach). 8a edição, São Paulo, Hucitec, 1991).
[20] Bottomore, Tom. Introdução à Sociologia. 3a edição, Rio de Janeiro, Zahar, 1970.
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