Antônio Flávio Pierucci
USP
Se eles são bonitos
sou Alain Delon
Se eles rezam muito
(Rita Lee, Balada do louco, Acústico MTV, 1998)
O século 20: o sexo em voga
Alemanha, décadas de 1900, 1910... Nem bem começava a
"era dos extremos" (Hobsbawn) e já o sexo posto em discurso, esta
invenção moderna que Foucault relata ter-se consumado apenas no século 19[1], passava a vigorar por si mesmo, a valer por
si mesmo, transvalorado experimentalmente por vanguardas comportamentais em
promessa de liber(t)ação radical, porta da felicidade, tábua de salvação. Innerweltliche Erlösung, cravou Max
Weber em 1915, no meio de sua sociologia da religião: "redenção
intramundana". Para os conservadores de sempre e os ascetas de plantão, a
revolução sexual de inícios do século 20 parecia o começo do fim, quando na
verdade era só o fim do começo.
Era tão-somente o fim daquele espichado começo que só
tardiamente se deflagrou no Ocidente — a "colocação do sexo em
discurso" — e que foi sendo armado em sucessivas camadas de saberes, do
século XVII até os últimos anos do século XIX, quando veio então Freud, com a
psicanálise, dar o acabamento à longa fase inicial, àquele prolongado período
dos primórdios disto que foi na realidade a grande mudança cultural: a
autonomização do sexo como esfera de valor reflexivamente autofundada, dotada
de uma dignidade inerente e uma legalidade própria (Eigengesetzlichkeit), em palavras de Weber; em palavras de
Foucault, a sexualidade humana como atividade específica e autônoma, com suas
próprias leis, suas próprias normalidades e anormalidades (Foucault, 1977; vide
Whimster, 1995). No frigir dos ovos, esfera de vida erótica eroticamente
autofundamentada. Auto-nomia. Como a arte pela arte, o sexo pelo sexo. Estava
aberto o século 20.
O freudismo — e tudo parece indicar que Max Weber levava
muito a sério o projeto de Freud (Jameson, 1974; Strong, 1987) — daria fim àquele arrastado começo, do qual a
sexualidade humana parecia despontar alvissareira, inflada por uma nova utopia
terrena de autoconhecimento e auto-realização, arrebatada enfim na
transparência de seu inevitável destino[2]:
o de abrir-se à demanda incondicional de um modo de vida radicalmente humano,
não importa se "demasiadamente humano" (Nieztsche). Portador social
desta promessa de emancipação-pessoal-cum-saúde-mental
(NB: cientificamente garantida, era esta a pretensão), o "movimento
erótico de liberação" saía a campo tentando provocar, mediante
experiências concretas de sociabilidade erotizada, o reconhecimento da
dignidade da esfera erótico-sexual, não só como uma dentre as formas legítimas
de se viver a modernidade cultural, uma dentre as diferentes maneiras de se
fazer modernamente a experiência direta dos conteúdos humanos da vida, de viver
corporeamente a vida nos novos tempos que então se inauguravam crivados de
novas fissuras libidinais e aberturas comportamentais, mas também — e aí estava
a novidade detectada pelo instrumental conceitual weberiano — como uma esfera de valor (e não mais de
desvalor) heterogênea em relação à
ética [der Ethik gegenüber heterogen]
(WL: 506). Como se no final de uma longa estrada principiasse uma grande
avenida, generosa em alternativas e repleta de potencialidades antes
impensáveis, o amor sexual — livre, requintado, diferente, solto, exigente,
digno e orgulhoso de si — entrava em voga no princípio do século 20 para nunca
mais sair. Laissez aller!
Os pais fundadores
Weber e Foucault convergem na visão de que o erotismo foi
socialmente construído na dobra de uma história bastante recente (Flynn, 1981;
Whimster, 1995). Na aurora do século 20, o gozo sexual, melhor dizendo, o gozo
do amor sexual — recém-dotado de inusitado appeal
e de um poder inédito de auto-sugestão, descoberto em sua força a um só tempo
individualizante e associativa, crescentemente subjetivante em sua capacidade
de associar pessoas livremente, tendo por conseguinte muito mais do que uma
significação periférica ou de ator coadjuvante para a integridade pessoal e o
chamado tecido social — passava a ser objeto de um interesse afirmativo de
proporções insólitas nas camadas mais modernas da moderna sociedade européia:
as elites educadas, os círculos intelectuais, os meios acadêmicos (cf.
Schorske, 1989). No decorrer de sucessivas décadas de progressiva erotização —
mesmo que ao preço de se banalizar como simulacro e show-off na subseqüente
explosão midiática da esfera pública — não dá para negar que, neste nosso
século que se encerra sob a égide de uma ovelha clonada, sex has been always there.
A novidade das propostas e das condutas em que se procurava
traduzir a novidade dessa atitude não passaria em brancas nuvens pelos olhos já
maduros dos pais fundadores da sociologia alemã. Nem poderia ser de outro modo,
sendo quem eram e interessados que estavam, também eles, na aventura sem télos da transvaloração dos valores.
Refiro-me a Georg Simmel (1858-1918) e Max Weber (1864-1920), dois grandes
amigos, ambos sociólogos geniais, fundamentais, sociólogos filosofantes[3],
que queriam e praticavam a sociologia como Kulturwissenschaft
e encaravam a pesquisa teórica, assim como a própria conduta de vida,como Kulturkritik.
O fato a ressaltar aqui é que os dois maiores nomes da
sociologia clássica alemã não deixaram de considerar com apreço e experimentar
em primeira mão, de explorar diretamente, na prática individual (ainda que
retardatária, no caso de Max Weber) mas também olimpicamente no trabalho de
teorizar com honestidade intelectual e circunspecção, com lucidez e força
analítica, mas também com invejável pathos
e inesperada força lírica, as novas possibilidades de Emanzipation abertas na aventura da diferenciação das sexualidades
"modernas" livremente escolhidas, das novas maneiras de encarar e
praticar o sexo possibilitadas pela "Grande Profanação"
contracultural que o decurso do século 20 veria se desdobrar e acrescentar de
década em década e que naquele contexto já se desenhava, o traço bem marcado
embora tortuoso, na explosiva modernidade daquele modernista début du 20e siècle, quando diferentes
grupos de vanguarda e círculos culturais, comunas existenciais e movimentos
sócio-culturais de liberação (como o movimento feminista, p. ex., e o movimento
erótico) começavam a inscrever na agenda das elites intelectuais essa outra
utopia, essa grandiosa aspiração civilizatória que até hoje é um desafio, a
saber, aquilo que n'A Ética Protestante,
numa nota de rodapé nem sempre notada[4],
Max Weber chamou de Vorurteilslosigkeit.
Algo como a "supressão de todos os preconceitos". Unprejudicedness, na literal (e, neste
particularíssimo caso, boa) tradução de Talcott Parsons.
Politeísmo dos valores, guerra dos deuses
O contexto
teórico no qual se insere a erótica weberiana é o da análise do processo de
racionalização cultural, que se produz e se processa como diferenciação e
autonomização das esferas culturais de valor. Autonomização irreversível, por
força da própria racionalização interna de cada esfera. Racionalização em
vórtice a partir de uma lógica própria, de uma legalidade própria, inerente (Eigengesetzlichkeit), que se exponencia
e não faz mais que avançar quando ocorre a institucionalização social das ordens de vida (Lebensordnungen) ou esferas de valor (Wertsphären) (vide Schluchter, 1979:
104-121). É, portanto, da perspectiva da luta
cultural que Weber considera a nova significação que o amor sexual adquire
na modernidade como valor em si mesmo e passa a trabalhar conceitualmente a
esfera da relação erótica dos sexos como o lugar para o desenvolvimento de um
estilo de vida expressivo, extraquotidiano e anticonvencional, muito próximo em
sua pretensão de validade dos novos padrões de conduta e de cultivo de si
experimentados e moldados com base nos valores estéticos. Dentro, pois, de um
modelo pluralista-conflitivo de modernização cultural.
O principal texto em que Max Weber
desenvolve essa teorização é a Zwischenbetrachtung — "Reflexão (ou consideração)
intermediária", que em português, tal como em inglês, é conhecida pelo
subtítulo "(Teoria das) Rejeições religiosas do mundo e suas
direções" — um ensaio de sua mais
pujante maturidade, cuja primeira versão é do final de dezembro de 1915, sendo
que a última revisão consta do primeiro volume dos Ensaios Reunidos de Sociologia da Religião (GARS), de 1920, como
parte integrante do grande estudo sobre a "Ética Econômica das Religiões
Mundiais" [Die Wirtschaftsethik der
Weltreligionen] e está inserido logo depois do ensaio sobre a religião da
China [Konfuzianismus und Taoismus] e
imediatamente antes do ensaio sobre a religião da Índia [Hinduismus und Buddhismus]. O título original do ensaio procura
intencionalmente dar conta desta sua localização intermediária: zwischen. O tradutor para o francês
pensou encontrar na palavra "parêntesis" — Parenthèse théorique — uma boa saída. Há quem prefira
"interlúdio teórico", que tem a vantagem de reter o "inter"
como prefixo.[5]
Seja como for, o que nos interessa fazer notar é que
foi justamente "no meio" de seus escritos sobre as religiões
universais, as quais, em sua classificação, fazem parte do gênero
"religiões de salvação" [Erlösungsreligion],
que Max Weber decidiu abordar
detidamente a temática erótico-sexual. Noutras palavras: ele decidiu falar de
sexo e erotismo ao tratar do processo de "eticização" da religiosidade
ocidental. Mais especificamente: a erótica weberiana encontra seu pretexto no
texto weberiano quando este passa a desenvolver a idéia do conflito inevitável
e irredutível que se instala entre sexo e religião no momento em que esta, para
durar, para não se volatilizar, procura "colocar o adepto num estado permanente [Dauerzustand] que o torne interiormente imune ao sofrimento",
quando os virtuoses religiosos procuram incutir nos seguidores um "hábito
duradouro" [Dauerhabitus] e aí,
então, a religião se transforma em
moral. A religião vira ética
religiosa.[6]
Ora bem, se a coisa adquire tais contornos a essas
alturas, porquanto a religião eticizada — a ética religiosa — desvaloriza (o verbo alemão é entwerten) a atividade sexual e
culpabiliza, ou seja, reprime o gozo pelo gozo, é fácil imaginar o alto grau de
intensificação da disputa a partir do momento em que, em pleno modernismo
cultural, o sexo passa a ser valorizado em si e por si mesmo[7].
Aí o conflito realmente esquenta. E claramente a partir deste momento, "a
ética não é a única coisa que 'tem valor' no mundo"[die Ethik nicht das Einzige ist, was auf der Welt 'gilt'], passando
antes a coexistir ao lado dela outras esferas de valor [andere Wertsphären] cujos valores só podem se realizar assumindo sobre
si uma 'culpa' ética" (WL: 504). Favor anotar: a ética não é a única coisa
que "vigora" neste mundo, Raimundo!
A frase contundente consta do ensaio
metodológico/epistemológico sobre o sentido da "neutralidade
axiológica" nas ciências sociais[8],
que é de 1917. Uma obra da maturidade, portanto. Basta esta afirmação, creio
eu, para deixar registrado que a partir de certa altura de sua vida Max Weber,
vira e mexe, volta a ferir o tema do amor sexual invariavelmente na chave do
conflito radical de valores, chamando a atenção para o fato de se tratar de uma
guerra sem fim, sem solução. Aqui ele fala de uma "luta intransponível e
mortal [unüberbrückbar tödlicher Kampf]
como se fosse entre Deus e o Diabo" (WL: 507). Não se trata simplesmente
de um processo de diferenciação orgânica, nem de mera multiplicação de
alternativas. O conflito de valores se dá, antes, com o fragor de uma batalha
mortal entre fragmentos irreconciliáveis. Não custa transcrever um trecho mais
longo deste ensaio metodológico da fase madura, cujo objeto específico, por
sinal, é a ciência, a possibilidade da objetividade científica e os limites do
acesso do especialista em ciência à verdade científica [wissenschaftliche Wahrheit] exatamente por causa da vigência sem
volta deste agonístico politeísmo dos valores (Mill), mas que, nem por isto,
deixa de tocar (ou melhor, talvez precisamente por isto, nesta precisa etapa de
sua vida, vai tocar) mais uma vez e mais de uma vez, no tema das relações
eróticas. Pace Foucault, sou da
opinião que tocar neste assunto é sempre um modo de deixar-se tocar pelo deus
Eros, "essa intramundana potência da vida" (ZB/GARS I: 554).
Exatamente como vinha sendo tocado nosso autor. Vamos lá:
"Suponhamos que um homem confidenciasse a uma
mulher a propósito de seu relacionamento erótico: 'No começo nossa relação não
passava de uma paixão, agora ela é um valor.' A fria e desapaixonada
objetividade da ética kantiana exprimiria a primeira parte desta frase com os
seguintes termos: 'No começo éramos apenas um meio um para o outro'. E, deste modo, poderíamos considerar toda a
frase como um caso particular daquele célebre princípio [o imperativo
categórico] que curiosamente se tentou apresentar como expressão puramente
histórica do 'individualismo', quando, na verdade, constitui uma formulação
genial de uma infinita diversidade de situações éticas, as quais só é preciso
compreender de modo correto. Em sua formulação negativa e abstraindo de
qualquer comentário sobre o que pudesse ser o oposto positivo do eticamente
reprovável 'tratar a outrem somente como um meio', este princípio implica
evidentemente (a) o reconhecimento de esferas autônomas de valor extra-éticas, (b) uma delimitação da
esfera ética em contraste com elas. (...) Efetivamente, aquelas esferas de
valor que permitem ou prescrevem que se trate a outrem 'apenas como meio' são heterogêneas em relação à ética"
(WL: 506, grifos meus).
Este é o ponto em que, na trajetória intelectual de
Max Weber, a discussão teórica que neste momento nos interessa realmente avança
e se materializa numa forma escrita que eu considero definitiva. Que existam na
modernidade tensões insolúveis entre a ética religiosa e as outras ordens não-religiosas do mundo, qualquer
intelectual minimamente moderno é capaz de ver (e até explicar) com facilidade.
O que entretanto Max Weber passa a conseguir formular com clarividência de 1915
em diante (isto é, da "Reflexão intermediária" em diante), com um
fraseado farto em figuras enfáticas e perpassado de uma certa impertinência, é
que este mundo, o mundo com que a ética religiosa se vê confrontada nos
"nossos tempos" — heute,
hoje — inclui, isto sim, esferas
não-éticas: as esferas não éticas dos valores irracionais e mesmo
anti-racionais deste mundo, dos ideais e conteúdos vitais que a despeito de
serem "heterogêneos à ética" podem, no entanto, efetivamente nos
salvar: isto é, dar sentido à nossa vida de forma plena, expandindo ao extremo
nossa cultura subjetiva — estas poderosas esferas de valor são as esferas do
belo e do gozo.
Weber e as
mulheres
Ainda que pareça de mau gosto, num ensaio como este é
indispensável para a clareza do argumento, e não por bisbilhotice ou
voyeurismo, contar que Max Weber em sua idade madura não só manteve
"relações eróticas" extremamente significativas com algumas mulheres
(Green, 1974; Roth, 1988; Bandeira e Osorio, 1997), como ainda a partir de
1907, mais ou menos, viu-se confrontado inescapavelmente, em seu próprio
círculo íntimo e em sua roda de amigos e conhecidos, não só com o movimento
feminista, mas também com alguns dos ativistas envolvidos nos mais ousados
experimentos comunais de erotização da vida que então se auto-apresentavam como
os revolucionários arautos de uma nova Weltanschauung
e de uma nova ética (Schwentker, 1996; Schluchter, 1996). Ou seja, ele se viu
às voltas com a "revolução sexual" posta em marcha na Alemanha do seu
tempo e que se alastrava principalmente nos círculos acadêmicos. Nas
"culturas intelectualistas", como gostava de dizer Max Weber,
sensível que era a essa síndrome de disposições inovadoras — esteticismo-erotismo-intelectualismo
— que muito mais tarde Pierre Bourdieu diagnosticaria como habitus cultural próprio das camadas altamente escolarizadas e que,
inspiradamente, chamaria de "boa vontade cultural" (Bourdieu, 1979).
Max Weber sentiu de muito perto, quando não
diretamente na própria pele, as rachaduras que o "movimento erótico"
do começo do século, atabalhoadamente em termos teóricos — e Weber não vai
deixar passar certos equívocos sem os criticar severamente — mas com muita
determinação de quebrar as correntes e soltar de vez as amarras da inibição
sexual, produzia no velho arcabouço axiológico da cultura ocidental, de matriz
moralizante porque judaico-cristã. Em seu relatório para a Jornada dos
Sociólogos Alemães (Deutscher
Soziologentag) de 1910, Weber usou o exemplo do movimento erótico para
justificar sua proposta de um survey das novas tendências de livre
associativismo. Falava dele como de uma "seita" — Weber e as seitas!
— orientada em torno das teorias de Freud com o propósito de criar um novo ser
humano, mentalmente sadio e sexualmente saudável porque "livre dos
complexos", basicamente do complexo de Édipo, e portador de uma
"ética psiquiátrica" que, para arrepio de Max Weber, se apresentava
como cientificamente embasada (Schluchter, 1996: 56-57). O ano de 1910 é,
assim, uma boa data de referência.
De 1910
a 1920, Max Weber viu sua própria vida e personalidade,
assim como sua sociologia, envolvidas em
ligações amorosas que o desafiaram a levar a sério, a
"apreciar" no sentido forte da palavra as exigências de prazer e
expressividade do amor moderno não fraterno e a acompanhar, até onde sua
honestidade para consigo o permitisse, o princípio do prazer nos intricados
meandros e obscuros recessos de si através dos redentores corpos daquelas a
quem chamou de "mulheres especificamente eróticas" (apud Liebersohn, 1988-89: 128). No que,
transgrediu normas familiares, pactos conjugais, ideais patrióticos, convicções
éticas e modos ascéticos. Isto, para não falar do abalo sofrido por sua antiga
e proverbial adesão (cf. Marianne Weber, 1995) ao ascetismo intramundano de
feitio puritano como o ideal de uma
vida digna. Este foi certamente o aspecto da coisa mais complicado de enfrentar
com o máximo de coerência pessoal e teórica, como ele queria. Nun aber kompliziert sich das Problem weiter:
"agora o problema fica ainda mais complicado" (WL: 506].
Durante muitos anos Max Weber aplicadamente pautou sua
vida em torno do que se lhe afigurava o summum
bonum, a saber, o dever [Pflicht]
de se dedicar quotidianamente,. dia após dia, a uma causa maior e totalmente
impessoal (Burger, 1993). No seu caso, a ciência como profissão: Wissenschaft als Beruf. Depois desses
seus, digamos assim, casos eróticos, foi como se o tipo de racionalização da
vida que se segue de uma posição ética de origem puritana com a pretensão de
regulamentar todas as esferas da vida não conseguisse mais esconder o caráter
de falha ou irreparável perda de que se reveste esta sua incapacidade de dar
conta, afirmativamente, de "toda entrega despreocupada às formas mais
intensas de experimentar a existência: a artística e a erótica", conforme
escreveu Max Weber, com impiedosa clareza, na Zwischenbetrachtung (GARS I: 563). Comentário de Wolfgang Mommsen:
"De repente, Weber perdeu as certezas: quem sabe a alternativa de viver os
próprios sentimentos eróticos, independentemente do impacto destrutivo que isto
pudesse ter sobre seu próprio meio-ambiente com suas complexas redes de
obrigações sociais e morais, não seria, afinal de contas, o melhor percurso?
(...) Mas, nessas questões, Weber permaneceu vulnerável pelo resto de seus
dias, tanto em sua vida intelectual quanto em sua vida privada " (Mommsen,
1987: 17).
Não admira, portanto, que ele tenha se tornado cada
vez mais atento, receptivo mesmo, a posições filosóficas e estéticas de cunho
vitalista e irracionalista que refutavam, com maior ou menor radicalidade, seu
próprio postulado fundamental acerca do valor incomparável da cultura ocidental
enquanto plasmadora da atitude humana básica de domínio racional do mundo (Weltbeherrschung), de dominação do mundo
natural exterior e de controle da natureza interior de cada qual (Schluchter,
1979; Goldman, 1988).
Não foi à toa que, perto do fim de sua vida, as duas
conferências que ele pronunciou em 1918, "A política como vocação" e
"A ciência como vocação", acabaram repercutindo, em outras chaves, em
outras variações, essa tardia experiência pessoal da tensão inapaziguável entre
eros e ética, ao tematizarem — com conhecimento de causa, with a knowledge, sublinha Liebersohn — os conflitos axiológicos do
indivíduo dividido entre demônios exigentes em guerra entre si, conflitos que
sua honestíssima vida acabava de lhe ensinar que são irresolúveis as a matter of fact, sem trégua, sem
fim. Um caso de amor com Else von Richthofen, outro com Mina Tobler... e aí
então, a descoberta teórica de uma nova axiologia nas relações extraconjugais:
"Em meio a essa situação de tensão com a quotidianeidade racional, a vida
sexual tornada extraquotidiana e especialmente a vida sexual extraconjungal [speziel also das ehefreie Geschlechtsleben],
podia valer como o único laço que ainda ligava à fonte natural de toda vida [die Naturquelle alles Lebens] o homem
totalmente emancipado do ciclo da velha e simples existência orgânica do camponês"
(ZB/GARS I: 560).
Este é, digamos assim, o contexto biográfico em que se insere a erótica weberiana (Green,
1974; Kent, 1985; Roth, 1988; Lichtblau, 1989-90; Liebersohn, 1988-89; Bologh,
1990; Gane, 1993; Schluchter, 1996; Schwentker, 1996; Bandeira & Osorio,
1997) cujo momento teórico mais alto e de maior fôlego resultou nessa obra
prima de concisão e riqueza conceitual, expandida numa direção risonhamente
dionisíaca, que são aquelas dez páginas da Zwischenbetrachtung
dedicadas às esferas dos valores estéticos e eróticos (GARS I, 1920 554-563).
Contexto teórico e contexto biográfico, neste caso, andaram de braços dados,
para gáudio deste comentarista que não vai resistir à tentação de registrar, de
passagem, que a palavra latina gaudium
traduz-se para o português diretamente como gozo.
Redenção
intramundana
Vale a pena reler a curta passagem que Habermas, em
sua obra maior, Teoria da Ação
Comunicativa, dedicou ao tema do erotismo na teoria da modernidade de Max
Weber: "A autonomização da arte significa, contudo, uma emancipação da
legalidade própria da esfera dos valores estéticos, emancipação que faz
possível uma racionalização da arte e, com isto, um cultivo consciente de
experiências no trato com a própria natureza interior, isto é, a auto-interpretação
metódico-expressiva de uma subjetividade emancipada das convenções
cognoscitivas e práticas da vida quotidiana. Weber analisa esta tendência
também na boêmia, nos estilos de vida
correspondentes ao desenvolvimento moderno da arte. Ele fala da autonomização e
estilização conseqüentes de uma esfera 'conscientemente cultivada e
extraquotidiana' do amor sexual, de uma erótica que pode chegar às raias da
'embriguez orgiástica' ou da 'obsessão patológica'. (...) A arte autônoma e a
expressiva apresentação que a subjetividade faz de si guardam antes uma relação
de complementaridade com a racionalização da vida quotidiana. Assumem o papel
compensador de uma 'redenção
intramundana em relação ao quotidiano e, sobretudo, em relação à crescente
pressão exercida pelo racionalismo teórico e prático' (ZB, GARS I: 555). A
configuração de uma esfera de valores estéticos e a mise en scène de um subjetivismo que encontra na boêmia forma
exemplar constituem um contramundo que vem se contrapor ao 'cosmos reificado'
do trabalho profissional.izado. É bem verdade, contudo, que a contracultura de
tipo estético, junto com a ciência e a técnica de um lado e, do outro, com as
representações modernas do direito e da moral, participa igualmente da
totalidade da cultura racionalizada" (Habermas, 1987: I/176).
Para Max Weber, a esfera estética e a esfera erótica,
porque configuradas ambas em função "daquelas potências intramundanas da
vida [mit jenen innerweltlichen Mächten
des Lebens] cuja natureza tem, na base, na raiz, um caráter a-racional ou
anti-racional" (ZB/GARS I: 554), são homólogas em sua direção
extraquotidiana. Conseguem a façanha de libertar o indivíduo de sua rotina sem
ter que, para tanto, afastá-lo deste mundo, retirá-lo do mundo. Retira-o do
quotidiano mas afirmando o mundo e suas forças. Salva-o das
"irrealidades" do dia-a-dia, sem ser pela rejeição do mundo e
tampouco pela negação de si (self-denial).
Ao contrário. O sexo e a arte, o prazer carnal e a beleza das formas, são para
Max Weber forças vitais deste mundo, são poderes do Aquém. Justamente o sexo e
a arte, "potências intramundanas da vida", são as forças reais do
irracional que podem nos redimir do racional, que podem tornar o racional
(pasmem!) irreal para nós, que podem nos levar "para fora" deste
quotidiano racionalizado das nossas "irrealidades obrigatórias" [aus den 'aufgegebener' Unwirklichkeiten,
WL: 506]. Forte, isto. Muito forte. Tão forte ou mais que isto, só mesmo a
metáfora dicotômica das "frias mãos esqueléticas" em contraposição
àquele hiperbólico e intraduzível superlativo — das Lebendigste ("o mais vivo"? "a vida mais
viva"?) — que por sua vez comenta uma outra metáfora, a que fala do
"saber-se o amante enxertado no miolo do verdadeiramente vivente" [in den Kern des wahrhaft Lebendigen
eingepflanzt]. Cumpre ler um trecho mais longo: "O amante sabe-se
enxertado no miolo do verdadeiramente vivo, que é para sempre inacessível a
todo esforço racional. Sabe que escapou das frias mãos esqueléticas das ordens
racionais, tão completamente quanto da idiotice do quotidiano. (...) Sabendo
que 'a vida mais viva' está unida a ele, coloca-se em oposição às experiências
do místico, que lhe parecem vazias de
objeto [objektlosen], como se estivesse diante de um pálido reino
irreal" (ZB/GARS I: 561).
E dá-lhe metáfora. A metáfora simmeliana da porta, da
aventura de se lançar numa abertura para fora, a metáfora de uma grande porta
aberta — eine Pforte — não deixa de
ocorrer a Weber neste contexto, assíduo leitor de Simmel que era, além de
amigo: "O erotismo elevou-se à esfera do conscientemente gozado (em sua
significação mais sublime). Não obstante, e na verdade precisamente por esta
elevação, o erotismo aparece, em contraste com os mecanismos da racionalização,
como uma porta aberta para o núcleo mais irracional e, por isso, mais real da
vida" [als eine Pforte zum
irrationalsten und dabei realsten Lebenskern] (ZB/GARS I: 558).
No ensaio metodológico supracitado (WL), Weber vai se
referir ao gozo amoroso-sexual como "o concretíssimo da experiência"
[das Konkretissimum des Erlebens],
aquilo que é "o mais intimamente genuíno e o mais próprio da vida" [das innerlich Echtesten und Eigentlichsten
des Lebens], engatando logo em seguida uma rápida reflexão na linha da
redenção intramundana que tem tudo a ver com a metáfora da porta, substituída
aqui por caminho. Caminho de saída, claro, caminho para fora [Weg hinaus]: "o único caminho, ou
melhor, o régio caminho para fora dos mecanismos de valor impessoais ou
suprapessoais e por isso hostis à vida ou, ainda, para fora da situação de
acorrentados à rocha inanimada [das
leblose Gestein] da existência quotidiana e das pretensões das irrealidades
'impostas'. Em todo caso é possível imaginar uma concepção deste ponto de vista
que — embora desdenhando o termo 'valor' para designar o concretíssimo da
vivência a que se refere — constituísse uma esfera que, rechaçando como coisa
estranha e hostil toda santidade ou bondade, toda legalidade ética ou mesmo
estética, toda significatividade cultural ou valoração pessoal, empalmasse para
si, apesar e até por causa disto, a pretensão [Anspruch] à sua própria dignidade 'imanente' no sentido mais
extremo da palavra" (WL: 506-507).
Como se pode ver, é deveras muito alto, altíssimo, o
nível teórico alcançado pela reflexão weberiana em torno do erótico nos últimos
anos de sua vida. Impressiona como é elevado, grandioso, extremado: alleräusserst. E aqui, neste ensaio
metodológico, ele alça este ligeiro porém altaneiro voo para logo em seguida
concluir o parágrafo reatando a erótica com suas considerações sobre o método
científico, tema central do ensaio: "Qualquer que seja a posição por nós
assumida perante tal pretensão, ela em todo caso não pode ser provada ou
refutada com os meios de nenhuma ciência" (WL:507). Keine Wissenschaft. Novamente, a separação das esferas de valor
como chave mestra.
O amor sexual, assim como a arte, constituídos ambos
na modernidade em cosmos de valores específicos, autônomos e auto-referidos (a
arte pela arte, o sexo pelo sexo), "adota de algum modo a função de uma redenção intramundana [innerweltliche E r l ö s u n g], não
importa como isto possa ser interpretado, em relação à quotidianeidade e, antes
de mais nada, à crescente pressão do racionalismo teórico e prático"
(ZB/GARS I: 555). Note-se que é Weber quem grifa a palavra Erlösung, que quer dizer redenção, salvação, libertação. Eis aí,
portanto, com todas as letras: beleza e eros como salvação neste mundo, como
redenção operada por potências (poderes) deste mundo, como libertação das
inibições e autonegações tendo em vista pura e simplesmente "valores do
mundo" [mit Werten der Welt, ZB:
544]. Ora, prossegue Max Weber, "esta pretensão entra em concorrência
direta com a religião de salvação. Toda ética religiosa racional tem que se
voltar contra esta irracioal redenção intramundana, pois a seus olhos aparece
como um reino de prazer irresponsável e de enrustida falta de amor (...) Em
contraste com a 'validade universal' da norma ética, (...) esta fuga da necessidade de tomar uma posição
ética racional pode constituir para a religião de salvação a mais profunda das
formas de mentalidade não-fraternal." (ibid.).
E completa:
"Em
contrapartida, para o artista criador ou para o destinatário [da arte]
esteticamente excitado a norma ética pode facilmente aparecer como uma violação
do mais autenticamente criativo e do mais intimamente pessoal" (ZB/GARS I:
555-556.).
Afinidades
eletivas, tensão ainda maior
A sociologia da religião que Weber passa a fazer na última
década de sua vida acompanha assim, não apenas em sua intertextualidade, mas na
tematização explícita e arrojada, no esforço renovado de teorização avançada,
as tensões que afloraram em sua vida pessoal recém-erotizada além daquelas
devidas a seus envolvimentos políticos. Aqui, o que nos motiva mais de perto é
o conflito existencial que emerge entre conduta de vida (Lebensführung) metódico-racional e estilo de vida (Lebensstil) expressivo[9]
(cf. Schluchter, 1996) entre racionalidade ético-prática e êxtase. Só que não o
êxtase místico, mas sim o êxtase sexual. Ambos os tipos de êxtase, percebe
agora Max Weber, também competem entre si. A excitação estética e a excitação
erótica não competem apenas com a religiosidade ética ou ético-ascética, mas
também com a experiência mística. Aliás, com o misticismo o erotismo compete
diretamente. Frontalmente. O primeiro é uma porta para o outro mundo, para a
transcendência, para a supramundadidade de um deus, para a extramundanidade da
salvação. O outro, uma porta aberta para a salvação neste mundo. A salvação
supramundana, sinônimo de rejeição religiosa do mundo, passa a enfrentar no
século 20 a
salvação intramundana identificada com a afirmação estético-erótica das
potências vitais deste mundo. Nos nossos tempos, a religião não luta mais
apenas e tão-somente contra a razão, a ciência, o intelectualismo — o
esclarecimento, numa palavra — como muitos dos nossos religiosos sociólogos da
religião continuam a pensar quando aplaudem festivamente o advento da
pós-modernidade como expressão da crise da razão moderna. Nos nossos tempos,
ditos pós-modernos, ultramodernos ou tardomodernos, a religião tem que se haver
é com a afirmatividade turbilhonada das esferas axiológicas irracionais (ou
mesmo anti-racionais, sublinha Max Weber) do gosto estético e do gozo erótico.
Eis aí o novo xis da questão para os portadores religiosos da promessa de
salvação no outro mundo.
"A forma mais irracional de comportamento religioso, a
experiência mística, é em sua essência mais íntima não só alheia à forma [formfremd], não passível de forma [unformbar] e incomunicável, mas também é
hostil à forma [formfeindlich], pois
acredita que, precisamente na explosão de todas as formas, poderá conhecer o
acesso ao Todo-Uno que está além de toda determinação e conformação. Para ela,
a indubitável afinididade psicológica entre a comoção artística e a religiosa
não pode ser senão um sintoma do caráter diabólico daquela" (ZB/GARS I:
556). Giram os dois tipos de êxtase em esferas de valor que se encontram
separadas por lógicas diferentes. Partem de posições de valor tão diferentes que
apontam justamente para mundos constelados em direções opostas. São
divergentes, mais que isto, antagônicos, e ainda assim afins. Para Weber, é
fora de dúvida que condividem uma incontornável afinidade: essa vontade de
irrazão, uma das muitas faces da vontade de potência. É parte integrante do
enfrentamento pessoal de Max Weber com o irracional chamar a atenção para a
afinidade eletiva entre a mística e a erótica enquanto mergulhos no irracional,
afinidade que, entretanto, só faz aumentar a tensão entre elas.
A luta de Weber contra a irracionalidade — é preciso repetir
que se trata de uma luta "pessoal"? — tinge-se, nos dez últimos anos de sua vida, de cores ainda mais
dramáticas, porquanto mais densa de interpessoalidades perturbadoras. Mais
carregada, portanto, de mixed feelings
e valores recém-descobertos (Sica, 1993; Turner, 1992), em meio a ênfases de
valor novas em folha e conceitos ainda por acabar de formar (Burger, 1987). Assim contaminada, energizada por
novos demônios, essa luta pessoal vem injetar novo vigor em seu próprio esforço
teórico — e metateórico, haja vista esse admirável exemplar de robustez
especulativa e visada existencial em que resultou o intrigante ensaio sobre
"o sentido da 'neutralidade axiológica' [Wertfreiheit] nas ciências sociais e econômicas", de 1917 (cf.
Weber, WL, 1988) — nova acuidade em seu esforço por capturar conceptualmente e
domar epistemologicamente o irracional, por definir e circunscrever, até onde
os tempos o permitiam, este que se lhe
afigurava um problema com todas as
letras, a fim de abrigar coerentemente em sua sociologia e em sua epistemologia
este genuíno nó cego, este problema propriamente dito, o qual, Alan Sica
insiste em nos lembrar, Max Weber costumava nomear com a locução das Irrationalitätsproblem (Sica, 1993). Na sociologia, o lugar por excelência
para esta discussão são seus ensaios de sociologia da religião (publicados
conjuntamente a partir de 1920, ano de sua morte).
Não custa lembrar, por isso mesmo, que nenhuma das duas
modalidades de êxtase tem, aos olhos de Weber, a capacidade de prover aos seres
humanos uma base conseqüente para a ação no mundo. Muito pelo contrário, são
procurados e experimentados como caminhos eficazes quando o que o indivíduo
busca nesse mergulho no irracional — no irracional-real operado pelas potências
vitais, ou no irracional-irreal das promessas de supramundanidade — libertar-se
justamente da ação, da vita activa,
da ascese intramundana[10],
noutras palavras, da vida de trabalho, do dever do trabalho, do trabalho
vocacional [Berufsarbeit]. O homem
erótico, assim como o místico à sua maneira, insurge-se contra a dominância do
homem de ação na modernidade enjaulada, petrificada pela civilização do
trabalho, contra o homem profissional [Berufsmensch]
como tipo cultural hegemônico. E isto no início do século tanto quanto um
século depois (vide Bologh, 1990).
Dos tempos de Max Weber aos dias atuais, o erotismo como modo
de vida continua sendo contracultura (Habermas, 1987: I/183; cf. Green, 1986 e
Schwentker, 1996).
Conclusão: o cerne da erótica weberiana
Assim falou Max Weber na Zwischenbetrachtung:
"A intensificação do erotismo no seio das culturas
modernas colide com o caráter inevitavelmente ascético do homem profissional
por vocação. Uma forte ênfase de valor sobre a específica sensação de ser salvo
do racional neste mundo, de triunfar gozosamente sobre o racional, corresponde
em seu radicalismo à rejeição, também inevitavelmente radical, de todo tipo de
ética de salvação no outro mundo, que pede o triunfo do espírito sobre o corpo.
Quando a esfera do sexual se sublima sistematicamente numa sensação erótica que
ressignifica e transfigura a pura animalidade da relação, esta tensão alcança
sua maior nitidez precisamente ali onde a religião de salvação adota o caráter
de uma religião de amor fraterno, de amor ao próximo. E isto porque, em tais
condições, a relação erótica parece proporcionar o ápice inexcedível da
exigência amorosa: a mútua penetração das almas. Opondo-se do modo mais radical
possível a todo o funcional, racional e universal, a imensidão sem limites da
entrega erótica exibe o significado incomparável que uma pessoa tem em sua
irracionalidade para esta outra. E tão-só para esta outra. Precisamente porque
esta vivência não se pode fundamentar por conceitos nem reduzir-se a conceitos,
totalmente incomunicável que é — daí sua afinidade com a "possessão"
mística, pela intensidade da experiência,
pela imediatez da realidade possuída — sente-se o amante enxertado no
âmago mesmo do autenticamente vivo, que é para sempre inacessível a todo
esforço racional, e sabe-se liberto das frias mãos de esqueleto das ordens
racionais, da chatice do quotidiano. A intensa sinceridade desta erótica diz
sim: afirma conscientemente a naturalidade da esfera sexual como um poder
criador corporificado. A tudo isso vai-se opor antagonicamente a ética
religiosa fraternal, se coerente. A pura sensação de intraterrena salvação no
reino do demasiado humano concorre, da maneira mais aguda possível, com a
devoção a um deus supramundano, ou com a entrega a uma ordem divina eticamente
racional, ou com o abandono de si à implosão mística da individuação"
(ZB/GARS I: 560-561).
E foi assim que a partir de um certo momento do curso de sua
vida Max Weber passou a falar da sensação de salvação puramente terrena que só "a sensação puramente
erótica enfaticamente valorizada" [der
Wertakzent der rein erotischen Sensation] pode aportar ao reino do
demasiado humano: in das Reich des Allzumenschlichen.
Epílogo
Eduard Baumgarten registra
uma conversa entre Max Weber e sua mulher Marianne, na qual ele perguntava a
ela:
— "Você consegue se
imaginar sendo uma mística?"
— "Seria a última coisa
em que eu iria pensar, com certeza", reagiu Marianne. "E você? Você
consegue se imaginar assim?"
—"Pode até acontecer
que eu seja um deles", respondeu Max. "Como em minha vida eu 'tenho
sonhado' mais do que o permitido, eu não me sinto realmente 'à vontade' ou 'em
casa' em parte alguma. É como se eu pudesse, se eu quisesse me retirar
completamente de tudo", respondeu
Max Weber (Baumgarten, 1964: 677).
The End
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Antônio
Flávio Pierucci
pierucci@usp.br
Departamento
de Sociologia da USP
São Paulo, se
[1]
Foucault escreveu que o sexo só foi descoberto no século XIX. Entenda-se: foi
somente com o aparecimento das tecnologias médicas e psicanalíticas da
sexualidade que se desenvolveu um discurso sobre o sexo como atividade humana
específica (Foucault, 1977).
[2] Sobre o significado e as "fatais"
implicações do uso da idéia de "destino" na sociologia de Max Weber,
vide Cohn (1979: 110-113).
[3] T. Caplow disse de Simmel que era "não
tanto um filósofo, quanto um filosofante" (Caplow, 1968).
[4]
Trata-se da nota 22 do capítulo final d' A
Ética protestante e o espírito do capitalismo, na qual Weber aponta para a
existência de um paralelo entre o racionalismo puritano da sexualidade e o
higienismo sexual em voga (Vide GARS I: pp. 170-171; na tradução para o inglês
de Talcott Parsons: pp. 263-264; na tradução
brasileira: pp. 205-206). Esta nota foi inserida tardiamente por Max
Weber, na versão final d'A Ética
Protestante e o Espírito do Capitalismo, preparada para a edição dos Ensaios Reunidos de Sociologia da Religião
(Gesammelte Aufsätze zur Religionssoziologie,
GARS) cujo primeiro tomo, dedicado à sua mulher Marianne Weber com uma jura de
amor conjugal eterno "até o pianíssimo da velhice" [bis ins Pianissimo des höchsten Alters],
saiu em 1920, ano da prematura morte de Max (GARS I, 1920). Não custa registrar,
a propósito, que os dois outros volumes contendo os ensaios de sociologia da
religião foram dedicados a duas outras mulheres que Max Weber amou e admirou: o
tomo II foi dedicado a Mina Tobler e o terceiro, a Else Jaffe-Richthofen.
[5] No
presente artigo, as citações da "Reflexão intermediária"
(Zwischenbetrachtung) serão da edição alemã
do primeiro tomo dos Gesammelte
Aufsätze zur Religionssoziologie (GARS). As referências se valerão portanto
da seguinte abreviatura: ZB:GARS I:
nº da página.
[6]
"Em lugar de um estado sagrado agudo e extraordinário, e por isso
passageiro, conseguido por meio da orgia, da ascese ou da contemplação, a meta
racional da religião de salvação, formulada abstratamente, tem sido a de
assegurar ao que é salvo um hábito duradouro e, por isso, assegurador da
salvação" (ZB: 540-541). Ou seja: religião de salvação [Erlösungsreligion] é impensável sem
ética. Ela é uma ética religiosa, por conseguinte. Em termos weberianos, ela
equivale idealtipicamente à ascese racional ativa, "a qual rejeita o sexo
por causa de sua irracionalidade e que é sentida pela erótica como um poder
mortalmente inimigo" [von der Erotik
als todfeindliche Macht empfunden wird] (ZB: 561).
[7] A
repetida leitura da "Reflexão intermediária" [Zwischenbetrachtung] e sobretudo minha progressiva impregnação com
o tratamento agonístico-antagonístico que aqui é dado à questão do amor sexual,
e, ademais, procurando levar devidamente em conta o ponto de vista em que se
posta Weber para este tratamento, está me deixando seriamente desconfiado de
que o nosso autor tentava tortuosamente dar aqui uma resposta sociológica, seja
dito, uma solução do ponto de vista dos agentes sociais portadores do erotismo
como um valor salvífico, à pergunta posta por Nietzsche na Genealogia da moral a respeito da possibilidade de cientificamente
se encontrar "o antagonista natural
do ideal ascético" e que, conforme lembra Gabriel Cohn, se traduz na
questão mais geral: "Onde está a vontade adversária, em que se exprime o ideal adversário?" (Cohn, 1979:
110). Não seria?
[8]
Sempre que citado este ensaio, será com base na edição alemã dos ensaios
reunidos de teoria da ciência, Gesammelte
Aufsätzse zur Wissensachtslehre (GAWL), e referido pela abreviatura WL: nº da página.
[9]
Para a distinção dos usos weberianos dos sintagmas "conduta de vida"e
"estilo de vida", vide Schluchter, 1996.
[10] Ou,
como preferem muitas traduções para o português, do "ascetismo
secular".
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