O SEXO COMO SALVAÇÃO NESTE MUNDO: A ERÓTICA WEBERIANA nos Ensaios Reunidos de Sociologia da Religião.

Antônio Flávio Pierucci
USP


Se eles são bonitos
sou Alain Delon
Se eles rezam muito
eu já estou no céu
(Rita Lee, Balada do louco, Acústico MTV, 1998)

 O século 20: o sexo em voga
Alemanha, décadas de 1900, 1910... Nem bem começava a "era dos extremos" (Hobsbawn) e já o sexo posto em discurso, esta invenção moderna que Foucault relata ter-se consumado apenas no século 19[1],  passava a vigorar por si mesmo, a valer por si mesmo, transvalorado experimentalmente por vanguardas comportamentais em promessa de liber(t)ação radical, porta da felicidade, tábua de salvação. Innerweltliche Erlösung, cravou Max Weber em 1915, no meio de sua sociologia da religião: "redenção intramundana". Para os conservadores de sempre e os ascetas de plantão, a revolução sexual de inícios do século 20 parecia o começo do fim, quando na verdade era só o fim do começo.
Era tão-somente o fim daquele espichado começo que só tardiamente se deflagrou no Ocidente — a "colocação do sexo em discurso" — e que foi sendo armado em sucessivas camadas de saberes, do século XVII até os últimos anos do século XIX, quando veio então Freud, com a psicanálise, dar o acabamento à longa fase inicial, àquele prolongado período dos primórdios disto que foi na realidade a grande mudança cultural: a autonomização do sexo como esfera de valor reflexivamente autofundada, dotada de uma dignidade inerente e uma legalidade própria (Eigengesetzlichkeit), em palavras de Weber; em palavras de Foucault, a sexualidade humana como atividade específica e autônoma, com suas próprias leis, suas próprias normalidades e anormalidades (Foucault, 1977; vide Whimster, 1995). No frigir dos ovos, esfera de vida erótica eroticamente autofundamentada. Auto-nomia. Como a arte pela arte, o sexo pelo sexo. Estava aberto o século 20.
O freudismo — e tudo parece indicar que Max Weber levava muito a sério o projeto de Freud (Jameson, 1974; Strong, 1987) —  daria fim àquele arrastado começo, do qual a sexualidade humana parecia despontar alvissareira, inflada por uma nova utopia terrena de autoconhecimento e auto-realização, arrebatada enfim na transparência de seu inevitável destino[2]: o de abrir-se à demanda incondicional de um modo de vida radicalmente humano, não importa se "demasiadamente humano" (Nieztsche). Portador social desta promessa de emancipação-pessoal-cum-saúde-mental (NB: cientificamente garantida, era esta a pretensão), o "movimento erótico de liberação" saía a campo tentando provocar, mediante experiências concretas de sociabilidade erotizada, o reconhecimento da dignidade da esfera erótico-sexual, não só como uma dentre as formas legítimas de se viver a modernidade cultural, uma dentre as diferentes maneiras de se fazer modernamente a experiência direta dos conteúdos humanos da vida, de viver corporeamente a vida nos novos tempos que então se inauguravam crivados de novas fissuras libidinais e aberturas comportamentais, mas também — e aí estava a novidade detectada pelo instrumental conceitual weberiano — como uma esfera de valor (e não mais de desvalor) heterogênea em relação à ética [der Ethik gegenüber heterogen] (WL: 506). Como se no final de uma longa estrada principiasse uma grande avenida, generosa em alternativas e repleta de potencialidades antes impensáveis, o amor sexual — livre, requintado, diferente, solto, exigente, digno e orgulhoso de si — entrava em voga no princípio do século 20 para nunca mais sair. Laissez aller!

Os pais fundadores
Weber e Foucault convergem na visão de que o erotismo foi socialmente construído na dobra de uma história bastante recente (Flynn, 1981; Whimster, 1995). Na aurora do século 20, o gozo sexual, melhor dizendo, o gozo do amor sexual — recém-dotado de inusitado appeal e de um poder inédito de auto-sugestão, descoberto em sua força a um só tempo individualizante e associativa, crescentemente subjetivante em sua capacidade de associar pessoas livremente, tendo por conseguinte muito mais do que uma significação periférica ou de ator coadjuvante para a integridade pessoal e o chamado tecido social — passava a ser objeto de um interesse afirmativo de proporções insólitas nas camadas mais modernas da moderna sociedade européia: as elites educadas, os círculos intelectuais, os meios acadêmicos (cf. Schorske, 1989). No decorrer de sucessivas décadas de progressiva erotização — mesmo que ao preço de se banalizar como simulacro e show-off  na subseqüente explosão midiática da esfera pública — não dá para negar que, neste nosso século que se encerra sob a égide de uma ovelha clonada, sex has been always there.
A novidade das propostas e das condutas em que se procurava traduzir a novidade dessa atitude não passaria em brancas nuvens pelos olhos já maduros dos pais fundadores da sociologia alemã. Nem poderia ser de outro modo, sendo quem eram e interessados que estavam, também eles, na aventura sem télos da transvaloração dos valores. Refiro-me a Georg Simmel (1858-1918) e Max Weber (1864-1920), dois grandes amigos, ambos sociólogos geniais, fundamentais, sociólogos  filosofantes[3], que queriam e praticavam a sociologia como Kulturwissenschaft e encaravam a pesquisa teórica, assim como a própria conduta de vida,como Kulturkritik.
O fato a ressaltar aqui é que os dois maiores nomes da sociologia clássica alemã não deixaram de considerar com apreço e experimentar em primeira mão, de explorar diretamente, na prática individual (ainda que retardatária, no caso de Max Weber) mas também olimpicamente no trabalho de teorizar com honestidade intelectual e circunspecção, com lucidez e força analítica, mas também com invejável pathos e inesperada força lírica, as novas possibilidades de Emanzipation abertas na aventura da diferenciação das sexualidades "modernas" livremente escolhidas, das novas maneiras de encarar e praticar o sexo possibilitadas pela "Grande Profanação" contracultural que o decurso do século 20 veria se desdobrar e acrescentar de década em década e que naquele contexto já se desenhava, o traço bem marcado embora tortuoso, na explosiva modernidade daquele modernista début du 20e siècle, quando diferentes grupos de vanguarda e círculos culturais, comunas existenciais e movimentos sócio-culturais de liberação (como o movimento feminista, p. ex., e o movimento erótico) começavam a inscrever na agenda das elites intelectuais essa outra utopia, essa grandiosa aspiração civilizatória que até hoje é um desafio, a saber, aquilo que n'A Ética Protestante, numa nota de  rodapé nem sempre notada[4], Max Weber chamou de Vorurteilslosigkeit. Algo como a "supressão de todos os preconceitos". Unprejudicedness, na literal (e, neste particularíssimo caso, boa) tradução de Talcott Parsons.

Politeísmo dos valores, guerra dos deuses
O contexto teórico no qual se insere a erótica weberiana é o da análise do processo de racionalização cultural, que se produz e se processa como diferenciação e autonomização das esferas culturais de valor. Autonomização irreversível, por força da própria racionalização interna de cada esfera. Racionalização em vórtice a partir de uma lógica própria, de uma legalidade própria, inerente (Eigengesetzlichkeit), que se exponencia e não faz mais que avançar quando ocorre a institucionalização social das ordens de vida (Lebensordnungen) ou esferas de valor (Wertsphären) (vide Schluchter, 1979: 104-121). É, portanto, da perspectiva da luta cultural que Weber considera a nova significação que o amor sexual adquire na modernidade como valor em si mesmo e passa a trabalhar conceitualmente a esfera da relação erótica dos sexos como o lugar para o desenvolvimento de um estilo de vida expressivo, extraquotidiano e anticonvencional, muito próximo em sua pretensão de validade dos novos padrões de conduta e de cultivo de si experimentados e moldados com base nos valores estéticos. Dentro, pois, de um modelo pluralista-conflitivo de modernização cultural.
O principal texto em que Max Weber desenvolve essa teorização é a Zwischenbetrachtung  — "Reflexão (ou consideração) intermediária", que em português, tal como em inglês, é conhecida pelo subtítulo "(Teoria das) Rejeições religiosas do mundo e suas direções" —  um ensaio de sua mais pujante maturidade, cuja primeira versão é do final de dezembro de 1915, sendo que a última revisão consta do primeiro volume dos Ensaios Reunidos de Sociologia da Religião (GARS), de 1920, como parte integrante do grande estudo sobre a "Ética Econômica das Religiões Mundiais" [Die Wirtschaftsethik der Weltreligionen] e está inserido logo depois do ensaio sobre a religião da China [Konfuzianismus und Taoismus] e imediatamente antes do ensaio sobre a religião da Índia [Hinduismus und Buddhismus]. O título original do ensaio procura intencionalmente dar conta desta sua localização intermediária: zwischen. O tradutor para o francês pensou encontrar na palavra "parêntesis" — Parenthèse théorique — uma boa saída. Há quem prefira "interlúdio teórico", que tem a vantagem de reter o "inter" como prefixo.[5]
Seja como for, o que nos interessa fazer notar é que foi justamente "no meio" de seus escritos sobre as religiões universais, as quais, em sua classificação, fazem parte do gênero "religiões de salvação" [Erlösungsreligion], que  Max Weber decidiu abordar detidamente a temática erótico-sexual. Noutras palavras: ele decidiu falar de sexo e erotismo ao tratar do processo de "eticização" da religiosidade ocidental. Mais especificamente: a erótica weberiana encontra seu pretexto no texto weberiano quando este passa a desenvolver a idéia do conflito inevitável e irredutível que se instala entre sexo e religião no momento em que esta, para durar, para não se volatilizar, procura "colocar o adepto num estado permanente [Dauerzustand] que o torne interiormente imune ao sofrimento", quando os virtuoses religiosos procuram incutir nos seguidores um "hábito duradouro" [Dauerhabitus] e aí, então, a religião se transforma em moral. A religião vira ética religiosa.[6]
Ora bem, se a coisa adquire tais contornos a essas alturas, porquanto a religião eticizada — a ética religiosa — desvaloriza (o verbo alemão é entwerten) a atividade sexual e culpabiliza, ou seja, reprime o gozo pelo gozo, é fácil imaginar o alto grau de intensificação da disputa a partir do momento em que, em pleno modernismo cultural, o sexo passa a ser valorizado em si e por si mesmo[7]. Aí o conflito realmente esquenta. E claramente a partir deste momento, "a ética não é a única coisa que 'tem valor' no mundo"[die Ethik nicht das Einzige ist, was auf der Welt 'gilt'], passando antes a coexistir ao lado dela outras esferas de valor [andere Wertsphären] cujos valores só podem se realizar assumindo sobre si uma 'culpa' ética" (WL: 504). Favor anotar: a ética não é a única coisa que "vigora" neste mundo, Raimundo!
A frase contundente consta do ensaio metodológico/epistemológico sobre o sentido da "neutralidade axiológica" nas ciências sociais[8], que é de 1917. Uma obra da maturidade, portanto. Basta esta afirmação, creio eu, para deixar registrado que a partir de certa altura de sua vida Max Weber, vira e mexe, volta a ferir o tema do amor sexual invariavelmente na chave do conflito radical de valores, chamando a atenção para o fato de se tratar de uma guerra sem fim, sem solução. Aqui ele fala de uma "luta intransponível e mortal [unüberbrückbar tödlicher Kampf] como se fosse entre Deus e o Diabo" (WL: 507). Não se trata simplesmente de um processo de diferenciação orgânica, nem de mera multiplicação de alternativas. O conflito de valores se dá, antes, com o fragor de uma batalha mortal entre fragmentos irreconciliáveis. Não custa transcrever um trecho mais longo deste ensaio metodológico da fase madura, cujo objeto específico, por sinal, é a ciência, a possibilidade da objetividade científica e os limites do acesso do especialista em ciência à verdade científica [wissenschaftliche Wahrheit] exatamente por causa da vigência sem volta deste agonístico politeísmo dos valores (Mill), mas que, nem por isto, deixa de tocar (ou melhor, talvez precisamente por isto, nesta precisa etapa de sua vida, vai tocar) mais uma vez e mais de uma vez, no tema das relações eróticas. Pace Foucault, sou da opinião que tocar neste assunto é sempre um modo de deixar-se tocar pelo deus Eros, "essa intramundana potência da vida" (ZB/GARS I: 554). Exatamente como vinha sendo tocado nosso autor. Vamos lá:
"Suponhamos que um homem confidenciasse a uma mulher a propósito de seu relacionamento erótico: 'No começo nossa relação não passava de uma paixão, agora ela é um valor.' A fria e desapaixonada objetividade da ética kantiana exprimiria a primeira parte desta frase com os seguintes termos: 'No começo éramos apenas um meio um para o outro'. E, deste modo, poderíamos considerar toda a frase como um caso particular daquele célebre princípio [o imperativo categórico] que curiosamente se tentou apresentar como expressão puramente histórica do 'individualismo', quando, na verdade, constitui uma formulação genial de uma infinita diversidade de situações éticas, as quais só é preciso compreender de modo correto. Em sua formulação negativa e abstraindo de qualquer comentário sobre o que pudesse ser o oposto positivo do eticamente reprovável 'tratar a outrem somente como um meio', este princípio implica evidentemente (a) o reconhecimento de esferas autônomas de valor extra-éticas, (b) uma delimitação da esfera ética em contraste com elas. (...) Efetivamente, aquelas esferas de valor que permitem ou prescrevem que se trate a outrem 'apenas como meio' são heterogêneas em relação à ética" (WL: 506, grifos meus).
Este é o ponto em que, na trajetória intelectual de Max Weber, a discussão teórica que neste momento nos interessa realmente avança e se materializa numa forma escrita que eu considero definitiva. Que existam na modernidade tensões insolúveis entre a ética religiosa e as outras ordens não-religiosas do mundo, qualquer intelectual minimamente moderno é capaz de ver (e até explicar) com facilidade. O que entretanto Max Weber passa a conseguir formular com clarividência de 1915 em diante (isto é, da "Reflexão intermediária" em diante), com um fraseado farto em figuras enfáticas e perpassado de uma certa impertinência, é que este mundo, o mundo com que a ética religiosa se vê confrontada nos "nossos tempos" — heute, hoje — inclui, isto sim, esferas não-éticas: as esferas não éticas dos valores irracionais e mesmo anti-racionais deste mundo, dos ideais e conteúdos vitais que a despeito de serem "heterogêneos à ética" podem, no entanto, efetivamente nos salvar: isto é, dar sentido à nossa vida de forma plena, expandindo ao extremo nossa cultura subjetiva — estas poderosas esferas de valor são as esferas do belo e do gozo.

Weber e as mulheres
Ainda que pareça de mau gosto, num ensaio como este é indispensável para a clareza do argumento, e não por bisbilhotice ou voyeurismo, contar que Max Weber em sua idade madura não só manteve "relações eróticas" extremamente significativas com algumas mulheres (Green, 1974; Roth, 1988; Bandeira e Osorio, 1997), como ainda a partir de 1907, mais ou menos, viu-se confrontado inescapavelmente, em seu próprio círculo íntimo e em sua roda de amigos e conhecidos, não só com o movimento feminista, mas também com alguns dos ativistas envolvidos nos mais ousados experimentos comunais de erotização da vida que então se auto-apresentavam como os revolucionários arautos de uma nova Weltanschauung e de uma nova ética (Schwentker, 1996; Schluchter, 1996). Ou seja, ele se viu às voltas com a "revolução sexual" posta em marcha na Alemanha do seu tempo e que se alastrava principalmente nos círculos acadêmicos. Nas "culturas intelectualistas", como gostava de dizer Max Weber, sensível que era a essa síndrome de disposições inovadoras — esteticismo-erotismo-intelectualismo — que muito mais tarde Pierre Bourdieu diagnosticaria como habitus cultural próprio das camadas altamente escolarizadas e que, inspiradamente, chamaria de "boa vontade cultural" (Bourdieu, 1979).
Max Weber sentiu de muito perto, quando não diretamente na própria pele, as rachaduras que o "movimento erótico" do começo do século, atabalhoadamente em termos teóricos — e Weber não vai deixar passar certos equívocos sem os criticar severamente — mas com muita determinação de quebrar as correntes e soltar de vez as amarras da inibição sexual, produzia no velho arcabouço axiológico da cultura ocidental, de matriz moralizante porque judaico-cristã. Em seu relatório para a Jornada dos Sociólogos Alemães (Deutscher Soziologentag) de 1910, Weber usou o exemplo do movimento erótico para justificar sua proposta de um survey das novas tendências de livre associativismo. Falava dele como de uma "seita" — Weber e as seitas! — orientada em torno das teorias de Freud com o propósito de criar um novo ser humano, mentalmente sadio e sexualmente saudável porque "livre dos complexos", basicamente do complexo de Édipo, e portador de uma "ética psiquiátrica" que, para arrepio de Max Weber, se apresentava como cientificamente embasada (Schluchter, 1996: 56-57). O ano de 1910 é, assim, uma boa data de referência.
De 1910 a 1920, Max Weber viu sua própria vida e personalidade, assim como sua sociologia, envolvidas em  ligações amorosas que o desafiaram a levar a sério, a "apreciar" no sentido forte da palavra as exigências de prazer e expressividade do amor moderno não fraterno e a acompanhar, até onde sua honestidade para consigo o permitisse, o princípio do prazer nos intricados meandros e obscuros recessos de si através dos redentores corpos daquelas a quem chamou de "mulheres especificamente eróticas" (apud Liebersohn, 1988-89: 128). No que, transgrediu normas familiares, pactos conjugais, ideais patrióticos, convicções éticas e modos ascéticos. Isto, para não falar do abalo sofrido por sua antiga e proverbial adesão (cf. Marianne Weber, 1995) ao ascetismo intramundano de feitio puritano como o ideal de uma vida digna. Este foi certamente o aspecto da coisa mais complicado de enfrentar com o máximo de coerência pessoal e teórica, como ele queria. Nun aber kompliziert sich das Problem weiter: "agora o problema fica ainda mais complicado" (WL: 506].
Durante muitos anos Max Weber aplicadamente pautou sua vida em torno do que se lhe afigurava o summum bonum, a saber, o dever [Pflicht] de se dedicar quotidianamente,. dia após dia, a uma causa maior e totalmente impessoal (Burger, 1993). No seu caso, a ciência como profissão: Wissenschaft als Beruf. Depois desses seus, digamos assim, casos eróticos, foi como se o tipo de racionalização da vida que se segue de uma posição ética de origem puritana com a pretensão de regulamentar todas as esferas da vida não conseguisse mais esconder o caráter de falha ou irreparável perda de que se reveste esta sua incapacidade de dar conta, afirmativamente, de "toda entrega despreocupada às formas mais intensas de experimentar a existência: a artística e a erótica", conforme escreveu Max Weber, com impiedosa clareza, na Zwischenbetrachtung (GARS I: 563). Comentário de Wolfgang Mommsen: "De repente, Weber perdeu as certezas: quem sabe a alternativa de viver os próprios sentimentos eróticos, independentemente do impacto destrutivo que isto pudesse ter sobre seu próprio meio-ambiente com suas complexas redes de obrigações sociais e morais, não seria, afinal de contas, o melhor percurso? (...) Mas, nessas questões, Weber permaneceu vulnerável pelo resto de seus dias, tanto em sua vida intelectual quanto em sua vida privada " (Mommsen, 1987: 17).
Não admira, portanto, que ele tenha se tornado cada vez mais atento, receptivo mesmo, a posições filosóficas e estéticas de cunho vitalista e irracionalista que refutavam, com maior ou menor radicalidade, seu próprio postulado fundamental acerca do valor incomparável da cultura ocidental enquanto plasmadora da atitude humana básica de domínio racional do mundo (Weltbeherrschung), de dominação do mundo natural exterior e de controle da natureza interior de cada qual (Schluchter, 1979; Goldman, 1988).
Não foi à toa que, perto do fim de sua vida, as duas conferências que ele pronunciou em 1918, "A política como vocação" e "A ciência como vocação", acabaram repercutindo, em outras chaves, em outras variações, essa tardia experiência pessoal da tensão inapaziguável entre eros e ética, ao tematizarem — com conhecimento de causa, with a knowledge, sublinha Liebersohn — os conflitos axiológicos do indivíduo dividido entre demônios exigentes em guerra entre si, conflitos que sua honestíssima vida acabava de lhe ensinar que são irresolúveis as a matter of fact, sem trégua, sem fim. Um caso de amor com Else von Richthofen, outro com Mina Tobler... e aí então, a descoberta teórica de uma nova axiologia nas relações extraconjugais: "Em meio a essa situação de tensão com a quotidianeidade racional, a vida sexual tornada extraquotidiana e especialmente a vida sexual extraconjungal [speziel also das ehefreie Geschlechtsleben], podia valer como o único laço que ainda ligava à fonte natural de toda vida [die Naturquelle alles Lebens] o homem totalmente emancipado do ciclo da velha e simples existência orgânica do camponês" (ZB/GARS I: 560).
Este é, digamos assim, o contexto biográfico em que se insere a erótica weberiana (Green, 1974; Kent, 1985; Roth, 1988; Lichtblau, 1989-90; Liebersohn, 1988-89; Bologh, 1990; Gane, 1993; Schluchter, 1996; Schwentker, 1996; Bandeira & Osorio, 1997) cujo momento teórico mais alto e de maior fôlego resultou nessa obra prima de concisão e riqueza conceitual, expandida numa direção risonhamente dionisíaca, que são aquelas dez páginas da Zwischenbetrachtung dedicadas às esferas dos valores estéticos e eróticos (GARS I, 1920 554-563). Contexto teórico e contexto biográfico, neste caso, andaram de braços dados, para gáudio deste comentarista que não vai resistir à tentação de registrar, de passagem, que a palavra latina gaudium traduz-se para o português diretamente como gozo.

Redenção intramundana
Vale a pena reler a curta passagem que Habermas, em sua obra maior, Teoria da Ação Comunicativa, dedicou ao tema do erotismo na teoria da modernidade de Max Weber: "A autonomização da arte significa, contudo, uma emancipação da legalidade própria da esfera dos valores estéticos, emancipação que faz possível uma racionalização da arte e, com isto, um cultivo consciente de experiências no trato com a própria natureza interior, isto é, a auto-interpretação metódico-expressiva de uma subjetividade emancipada das convenções cognoscitivas e práticas da vida quotidiana. Weber analisa esta tendência também na boêmia, nos estilos de vida correspondentes ao desenvolvimento moderno da arte. Ele fala da autonomização e estilização conseqüentes de uma esfera 'conscientemente cultivada e extraquotidiana' do amor sexual, de uma erótica que pode chegar às raias da 'embriguez orgiástica' ou da 'obsessão patológica'. (...) A arte autônoma e a expressiva apresentação que a subjetividade faz de si guardam antes uma relação de complementaridade com a racionalização da vida quotidiana. Assumem o papel compensador de uma 'redenção intramundana em relação ao quotidiano e, sobretudo, em relação à crescente pressão exercida pelo racionalismo teórico e prático' (ZB, GARS I: 555). A configuração de uma esfera de valores estéticos e a mise en scène de um subjetivismo que encontra na boêmia forma exemplar constituem um contramundo que vem se contrapor ao 'cosmos reificado' do trabalho profissional.izado. É bem verdade, contudo, que a contracultura de tipo estético, junto com a ciência e a técnica de um lado e, do outro, com as representações modernas do direito e da moral, participa igualmente da totalidade da cultura racionalizada" (Habermas, 1987: I/176).
Para Max Weber, a esfera estética e a esfera erótica, porque configuradas ambas em função "daquelas potências intramundanas da vida [mit jenen innerweltlichen Mächten des Lebens] cuja natureza tem, na base, na raiz, um caráter a-racional ou anti-racional" (ZB/GARS I: 554), são homólogas em sua direção extraquotidiana. Conseguem a façanha de libertar o indivíduo de sua rotina sem ter que, para tanto, afastá-lo deste mundo, retirá-lo do mundo. Retira-o do quotidiano mas afirmando o mundo e suas forças. Salva-o das "irrealidades" do dia-a-dia, sem ser pela rejeição do mundo e tampouco pela negação de si (self-denial). Ao contrário. O sexo e a arte, o prazer carnal e a beleza das formas, são para Max Weber forças vitais deste mundo, são poderes do Aquém. Justamente o sexo e a arte, "potências intramundanas da vida", são as forças reais do irracional que podem nos redimir do racional, que podem tornar o racional (pasmem!) irreal para nós, que podem nos levar "para fora" deste quotidiano racionalizado das nossas "irrealidades obrigatórias" [aus den 'aufgegebener' Unwirklichkeiten, WL: 506]. Forte, isto. Muito forte. Tão forte ou mais que isto, só mesmo a metáfora dicotômica das "frias mãos esqueléticas" em contraposição àquele hiperbólico e intraduzível superlativo — das Lebendigste ("o mais vivo"? "a vida mais viva"?) — que por sua vez comenta uma outra metáfora, a que fala do "saber-se o amante enxertado no miolo do verdadeiramente vivente" [in den Kern des wahrhaft Lebendigen eingepflanzt]. Cumpre ler um trecho mais longo: "O amante sabe-se enxertado no miolo do verdadeiramente vivo, que é para sempre inacessível a todo esforço racional. Sabe que escapou das frias mãos esqueléticas das ordens racionais, tão completamente quanto da idiotice do quotidiano. (...) Sabendo que 'a vida mais viva' está unida a ele, coloca-se em oposição às experiências do místico, que lhe parecem vazias de objeto [objektlosen], como se estivesse diante de um pálido reino irreal" (ZB/GARS I: 561).
E dá-lhe metáfora. A metáfora simmeliana da porta, da aventura de se lançar numa abertura para fora, a metáfora de uma grande porta aberta — eine Pforte — não deixa de ocorrer a Weber neste contexto, assíduo leitor de Simmel que era, além de amigo: "O erotismo elevou-se à esfera do conscientemente gozado (em sua significação mais sublime). Não obstante, e na verdade precisamente por esta elevação, o erotismo aparece, em contraste com os mecanismos da racionalização, como uma porta aberta para o núcleo mais irracional e, por isso, mais real da vida" [als eine Pforte zum irrationalsten und dabei realsten Lebenskern] (ZB/GARS I: 558).
No ensaio metodológico supracitado (WL), Weber vai se referir ao gozo amoroso-sexual como "o concretíssimo da experiência" [das Konkretissimum des Erlebens], aquilo que é "o mais intimamente genuíno e o mais próprio da vida" [das innerlich Echtesten und Eigentlichsten des Lebens], engatando logo em seguida uma rápida reflexão na linha da redenção intramundana que tem tudo a ver com a metáfora da porta, substituída aqui por caminho. Caminho de saída, claro, caminho para fora [Weg hinaus]: "o único caminho, ou melhor, o régio caminho para fora dos mecanismos de valor impessoais ou suprapessoais e por isso hostis à vida ou, ainda, para fora da situação de acorrentados à rocha inanimada [das leblose Gestein] da existência quotidiana e das pretensões das irrealidades 'impostas'. Em todo caso é possível imaginar uma concepção deste ponto de vista que — embora desdenhando o termo 'valor' para designar o concretíssimo da vivência a que se refere — constituísse uma esfera que, rechaçando como coisa estranha e hostil toda santidade ou bondade, toda legalidade ética ou mesmo estética, toda significatividade cultural ou valoração pessoal, empalmasse para si, apesar e até por causa disto, a pretensão [Anspruch] à sua própria dignidade 'imanente' no sentido mais extremo da palavra" (WL: 506-507).
Como se pode ver, é deveras muito alto, altíssimo, o nível teórico alcançado pela reflexão weberiana em torno do erótico nos últimos anos de sua vida. Impressiona como é elevado, grandioso, extremado: alleräusserst. E aqui, neste ensaio metodológico, ele alça este ligeiro porém altaneiro voo para logo em seguida concluir o parágrafo reatando a erótica com suas considerações sobre o método científico, tema central do ensaio: "Qualquer que seja a posição por nós assumida perante tal pretensão, ela em todo caso não pode ser provada ou refutada com os meios de nenhuma ciência" (WL:507). Keine Wissenschaft. Novamente, a separação das esferas de valor como chave mestra.
O amor sexual, assim como a arte, constituídos ambos na modernidade em cosmos de valores específicos, autônomos e auto-referidos (a arte pela arte, o sexo pelo sexo), "adota de algum modo a função de uma redenção intramundana [innerweltliche E r l ö s u n g], não importa como isto possa ser interpretado, em relação à quotidianeidade e, antes de mais nada, à crescente pressão do racionalismo teórico e prático" (ZB/GARS I: 555). Note-se que é Weber quem grifa a palavra Erlösung, que quer dizer redenção, salvação, libertação. Eis aí, portanto, com todas as letras: beleza e eros como salvação neste mundo, como redenção operada por potências (poderes) deste mundo, como libertação das inibições e autonegações tendo em vista pura e simplesmente "valores do mundo" [mit Werten der Welt, ZB: 544]. Ora, prossegue Max Weber, "esta pretensão entra em concorrência direta com a religião de salvação. Toda ética religiosa racional tem que se voltar contra esta irracioal redenção intramundana, pois a seus olhos aparece como um reino de prazer irresponsável e de enrustida falta de amor (...) Em contraste com a 'validade universal' da norma ética, (...)  esta fuga da necessidade de tomar uma posição ética racional pode constituir para a religião de salvação a mais profunda das formas de mentalidade não-fraternal." (ibid.). E completa:
 "Em contrapartida, para o artista criador ou para o destinatário [da arte] esteticamente excitado a norma ética pode facilmente aparecer como uma violação do mais autenticamente criativo e do mais intimamente pessoal" (ZB/GARS I: 555-556.).


Afinidades eletivas, tensão ainda maior
A sociologia da religião que Weber passa a fazer na última década de sua vida acompanha assim, não apenas em sua intertextualidade, mas na tematização explícita e arrojada, no esforço renovado de teorização avançada, as tensões que afloraram em sua vida pessoal recém-erotizada além daquelas devidas a seus envolvimentos políticos. Aqui, o que nos motiva mais de perto é o conflito existencial que emerge entre conduta de vida (Lebensführung) metódico-racional e estilo de vida (Lebensstil) expressivo[9] (cf. Schluchter, 1996) entre racionalidade ético-prática e êxtase. Só que não o êxtase místico, mas sim o êxtase sexual. Ambos os tipos de êxtase, percebe agora Max Weber, também competem entre si. A excitação estética e a excitação erótica não competem apenas com a religiosidade ética ou ético-ascética, mas também com a experiência mística. Aliás, com o misticismo o erotismo compete diretamente. Frontalmente. O primeiro é uma porta para o outro mundo, para a transcendência, para a supramundadidade de um deus, para a extramundanidade da salvação. O outro, uma porta aberta para a salvação neste mundo. A salvação supramundana, sinônimo de rejeição religiosa do mundo, passa a enfrentar no século 20 a salvação intramundana identificada com a afirmação estético-erótica das potências vitais deste mundo. Nos nossos tempos, a religião não luta mais apenas e tão-somente contra a razão, a ciência, o intelectualismo — o esclarecimento, numa palavra — como muitos dos nossos religiosos sociólogos da religião continuam a pensar quando aplaudem festivamente o advento da pós-modernidade como expressão da crise da razão moderna. Nos nossos tempos, ditos pós-modernos, ultramodernos ou tardomodernos, a religião tem que se haver é com a afirmatividade turbilhonada das esferas axiológicas irracionais (ou mesmo anti-racionais, sublinha Max Weber) do gosto estético e do gozo erótico. Eis aí o novo xis da questão para os portadores religiosos da promessa de salvação no outro mundo.
"A forma mais irracional de comportamento religioso, a experiência mística, é em sua essência mais íntima não só alheia à forma [formfremd], não passível de forma [unformbar] e incomunicável, mas também é hostil à forma [formfeindlich], pois acredita que, precisamente na explosão de todas as formas, poderá conhecer o acesso ao Todo-Uno que está além de toda determinação e conformação. Para ela, a indubitável afinididade psicológica entre a comoção artística e a religiosa não pode ser senão um sintoma do caráter diabólico daquela" (ZB/GARS I: 556). Giram os dois tipos de êxtase em esferas de valor que se encontram separadas por lógicas diferentes. Partem de posições de valor tão diferentes que apontam justamente para mundos constelados em direções opostas. São divergentes, mais que isto, antagônicos, e ainda assim afins. Para Weber, é fora de dúvida que condividem uma incontornável afinidade: essa vontade de irrazão, uma das muitas faces da vontade de potência. É parte integrante do enfrentamento pessoal de Max Weber com o irracional chamar a atenção para a afinidade eletiva entre a mística e a erótica enquanto mergulhos no irracional, afinidade que, entretanto, só faz aumentar a tensão entre elas.
A luta de Weber contra a irracionalidade — é preciso repetir que se trata de uma luta "pessoal"? — tinge-se, nos dez últimos anos de sua vida, de cores ainda mais dramáticas, porquanto mais densa de interpessoalidades perturbadoras. Mais carregada, portanto, de mixed feelings e valores recém-descobertos (Sica, 1993; Turner, 1992), em meio a ênfases de valor novas em folha e conceitos ainda por acabar de formar (Burger, 1987). Assim contaminada, energizada por novos demônios, essa luta pessoal vem injetar novo vigor em seu próprio esforço teórico — e metateórico, haja vista esse admirável exemplar de robustez especulativa e visada existencial em que resultou o intrigante ensaio sobre "o sentido da 'neutralidade axiológica' [Wertfreiheit] nas ciências sociais e econômicas", de 1917 (cf. Weber, WL, 1988) — nova acuidade em seu esforço por capturar conceptualmente e domar epistemologicamente o irracional, por definir e circunscrever, até onde os tempos o permitiam, este  que se lhe afigurava um problema com todas as letras, a fim de abrigar coerentemente em sua sociologia e em sua epistemologia este genuíno nó cego, este problema propriamente dito, o qual, Alan Sica insiste em nos lembrar, Max Weber costumava nomear com a locução das Irrationalitätsproblem (Sica, 1993). Na sociologia, o lugar por excelência para esta discussão são seus ensaios de sociologia da religião (publicados conjuntamente a partir de 1920, ano de sua morte).
Não custa lembrar, por isso mesmo, que nenhuma das duas modalidades de êxtase tem, aos olhos de Weber, a capacidade de prover aos seres humanos uma base conseqüente para a ação no mundo. Muito pelo contrário, são procurados e experimentados como caminhos eficazes quando o que o indivíduo busca nesse mergulho no irracional — no irracional-real operado pelas potências vitais, ou no irracional-irreal das promessas de supramundanidade — libertar-se justamente da ação, da vita activa, da ascese intramundana[10], noutras palavras, da vida de trabalho, do dever do trabalho, do trabalho vocacional [Berufsarbeit]. O homem erótico, assim como o místico à sua maneira, insurge-se contra a dominância do homem de ação na modernidade enjaulada, petrificada pela civilização do trabalho, contra o homem profissional [Berufsmensch] como tipo cultural hegemônico. E isto no início do século tanto quanto um século depois (vide Bologh, 1990).
Dos tempos de Max Weber aos dias atuais, o erotismo como modo de vida continua sendo contracultura (Habermas, 1987: I/183; cf. Green, 1986 e Schwentker, 1996).

Conclusão: o cerne da erótica weberiana
Assim falou Max Weber na Zwischenbetrachtung:
"A intensificação do erotismo no seio das culturas modernas colide com o caráter inevitavelmente ascético do homem profissional por vocação. Uma forte ênfase de valor sobre a específica sensação de ser salvo do racional neste mundo, de triunfar gozosamente sobre o racional, corresponde em seu radicalismo à rejeição, também inevitavelmente radical, de todo tipo de ética de salvação no outro mundo, que pede o triunfo do espírito sobre o corpo. Quando a esfera do sexual se sublima sistematicamente numa sensação erótica que ressignifica e transfigura a pura animalidade da relação, esta tensão alcança sua maior nitidez precisamente ali onde a religião de salvação adota o caráter de uma religião de amor fraterno, de amor ao próximo. E isto porque, em tais condições, a relação erótica parece proporcionar o ápice inexcedível da exigência amorosa: a mútua penetração das almas. Opondo-se do modo mais radical possível a todo o funcional, racional e universal, a imensidão sem limites da entrega erótica exibe o significado incomparável que uma pessoa tem em sua irracionalidade para esta outra. E tão-só para esta outra. Precisamente porque esta vivência não se pode fundamentar por conceitos nem reduzir-se a conceitos, totalmente incomunicável que é — daí sua afinidade com a "possessão" mística, pela intensidade da experiência,  pela imediatez da realidade possuída — sente-se o amante enxertado no âmago mesmo do autenticamente vivo, que é para sempre inacessível a todo esforço racional, e sabe-se liberto das frias mãos de esqueleto das ordens racionais, da chatice do quotidiano. A intensa sinceridade desta erótica diz sim: afirma conscientemente a naturalidade da esfera sexual como um poder criador corporificado. A tudo isso vai-se opor antagonicamente a ética religiosa fraternal, se coerente. A pura sensação de intraterrena salvação no reino do demasiado humano concorre, da maneira mais aguda possível, com a devoção a um deus supramundano, ou com a entrega a uma ordem divina eticamente racional, ou com o abandono de si à implosão mística da individuação" (ZB/GARS I: 560-561).
E foi assim que a partir de um certo momento do curso de sua vida Max Weber passou a falar da sensação de salvação puramente terrena que só "a sensação puramente erótica enfaticamente valorizada" [der Wertakzent der rein erotischen Sensation] pode aportar ao reino do demasiado humano: in das Reich des Allzumenschlichen.

Epílogo
Eduard Baumgarten registra uma conversa entre Max Weber e sua mulher Marianne, na qual ele perguntava a ela:
— "Você consegue se imaginar sendo uma mística?"
— "Seria a última coisa em que eu iria pensar, com certeza", reagiu Marianne. "E você? Você consegue se imaginar assim?"
—"Pode até acontecer que eu seja um deles", respondeu Max. "Como em minha vida eu 'tenho sonhado' mais do que o permitido, eu não me sinto realmente 'à vontade' ou 'em casa' em parte alguma. É como se eu pudesse, se eu quisesse me retirar completamente de tudo", respondeu Max Weber (Baumgarten, 1964: 677).
The End


Bibliografia

BANDEIRA, Lourdes & OSORIO, Rafael (1997). As mulheres e Max Weber: uma incursão pela vida privada. UnB, Departamento de Sociologia/SOL.
BAUMGARTEN,  Eduard (1964). Max Weber: Werk und Person. Tübingen, J.C.B. Mohr.
BOLOGH, Roslyn Wallach (1987). Max Weber on Erotic Love: A Feminist Inquiry. In: LASH, Scott & WHIMSTER, Sam (orgs.). Max Weber: Rationality and Modernity. London, Allen & Unwin: 242-258.
BOLOGH, Roslyn Wallach (1990). Love or Greatness: Max Weber and Masculine Thinking: A Feminist Theory. Winchester, MA, Unwin Hyman.
BOURDIEU, Pierre (1979). La distinction. Paris, Minuit.
BRUBAKER, Rogers (1984). The Limits of Rationality: An Essay on the Social and Moral Thought of Max Weber. London, George Allen & Unwin.
BURGER, Thomas (1987). Max Weber's Theory of Concept Formation: History, Laws, and Ideal Types (edição ampliada). Durham, Duke University Press.
BURGER, Thomas (1993). Weber's  Sociology and Weber's Personality. Theory and Society vol.22, nº 6, December: 813-836.
CAPLOW, T. (1968). In Praise of Georg Simmel. In: Two Against One. Englewood Cliffs, NJ, Prentice Hall, cap. II.
COHN, Gabriel (1979). Crítica e resignação: fundamentos da sociologia de Max Weber. São Paulo, T.A. Queiroz Editor.
COSER, Lewis A. (1977). Georg Simmel's Neglected Contributions to the Sociology of Women. Signs 2: 869-876.
EDEN, Robert (1984). Political Leadership and Nihilism: A Study of Weber and Nietzsche. Tampa, University Presses of Florida.
EDEN, Robert (1987). Weber and Nietzsche: Questioning the Liberation of Social Science from Historicism. In: MOMMSEN, Wolfgang J. & OSTERHAMMEL, Jürgen (orgs. ). Max Weber and His Contemporaries. London, Unwin Hyman: 405-421.
FLYNN, Bernard (1981). Sexuality, Knowledge and Power in the Thought of Michel Foucault. Philosophy and Social Criticism vol. 8, nº 3, Fall: 331-348.
FOUCAULT, Michel (1977). História da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro, Graal.
FRISBY, David (1987). The Ambiguity of Modernity; Georg Simmel and Max Weber. In: MOMMSEN, Wolfgang J. & OSTERHAMMEL, Jürgen (orgs.). Max Weber and His Contemporaries. London, Unwin Hyman: 422-433.
GANE, Mike (1993). In Fate: Max Weber, Marianne Weber, and Else von Richthofen. In: ——— Harmless Lovers? Gender, Theory and Personal Relationships. New York, Routledge.
GERTH, Hans H. & MILLS, Charles Wright (1948). The Man and His Work. In: —— From Max Weber: Essays in Sociology. London, Routledge & Kegan Paul.
GILCHER-HOLTEY, Ingrid (1988). Max Weber und die Frauen. In: GNEUSS, Christian & KOCHA, Jürgen (orgs.). Max Weber: Ein Symposium. München, Taschenbuch Verlag: 142-154. [Trad. franc.: (1990). Max Weber et les femmes. Sociétés, Revue des Sciences Humaines et Sociales nº 28: 65-73.]
GOLDMAN, Harvey (1988). Max Weber and Thomas Mann: Calling and the Shaping of the Self. Berkeley/Los Angeles, University of California Press.
GREEN, Martin (1974). The von Richthofen Sisters: The Triumphant and the Tragic Modes of Love. Else and Frieda Richthofen, Otto Gross, Max Weber, and D. H. Lawrence in the Years 1870-1970. New York, Basic Books.
GREEN, Martin (1986). Mountain of Truth: The Counterculture Begins. Ascona, 1900-1920. Hanover, NH: University Press of New England.
GROSS, David (1988-89). Weber in Context: The Dilemmas of Modernity. Telos nº 78, Winter: 109-117.
HABERMAS,  Jürgen (1987). Théorie de l'agir communicationnel, 2 vols. Paris, Fayard.
HENNIS, Wilhelm (1996). La problématique de Max Weber. Paris, PUF. [Orig. alemão: (1987). Max Webers Fragestellung: Studien zur Biographie des Werks. Tübingen, J.C.B. Mohr/ Paul Siebeck.]
JAMESON, Fredric (1974). The Vanishing Mediator: Narrative Structure in Max Weber. New German Critique vol. 1: 65-66.
KÄSLER, Dirk (1988). Max Weber: An Introduction to His Life and Work. Chicago, University of Chicago Press.
KENT, Stephen (1985). Weber, Goethe, and William Penn: Themes of Marital Love. Sociological Analysis vol.46, nº 3, Fall: 315-320.
LASH, Scott & WHIMSTER, Sam (orgs.) (1987). Max Weber: Rationality and Modernity. London, Allen & Unwin.
LEITES, Edmund (1982). The Duty of Desire: Love, Friendship, and Sexuality in Some Puritan Theories of Marriage. Jornal of Social History vol.15, nº 3, Spring: 383-408.
LEITES, Edmund  (1987). A consciência puritana e a sexualidade moderna. São Paulo, Brasiliense.
LICHTBLAU, Klaus (1989-90). Eros and Culture: Gender Theory in Simmel, Tönnies and Weber. Telos nº 82, winter: 89-110.
LIEBERSOHN, Harry (1988). Fate and Utopia in German Sociology, 1870-1923. Cambridge, MIT Press.
LIEBERSOHN, Harry (1988-89). Weber and Women. Telos nº 78, Winter: 123-129.
MITZMAN, Arthur (1969). Weber's Retreat from Ascetic Rationalism (1907-1920). In: ——— The Iron Cage: An Historical Interpretation of Max Weber. New York, Universal Library: pp.253-296, cap. 9.
MOMMSEN, Wolfgang J. (1987). Introduction. In: MOMMSEN, Wolfgang J. & OSTERHAMMEL, Jürgen (orgs.). Max Weber and His Contemporaries. London, Unwin Hyman: 1-21.
RINGER, Fritz K. (1969). The Decline of the German Mandarins: The German Academic Community, 1890-1933. Cambridge, Massachusetts, Harvard University Press.
ROTH, Guenther (1988). Marianne Weber and Her Circle. "Introduction" to Max Weber: A Biography, by Marianne Weber. New Brunswick, Transaction Books. [Trad. esp. (1995). Marianne Weber y su círculo. "Introducción" a Biografia de Max Weber. México, Fondo de Cultura Económica.]
SCAFF, Lawrence A. (1984). Weber before Weberian Sociology. British Journal of Sociology vol. 35: 190-215.
SCAFF, Lawrence A. (1989). Fleeing the Iron Cage: Culture, Politics, and Modernity in the Thought of Max Weber. Berkeley/Los Angeles, University of California Press.
SCHORSKE, Carl E. (1989). Viena fim de século: política e cultura. São Paulo, Companhia das Letras.
SCHLUCHTER, Wolfgang (1979). Die Entwicklung des okzidentalen Rationalismus. Tübingen, J.C.B. Mohr. [Trad. ing.:The Rise of Western Rationalism. Max Weber's Developmental History. Berkeley/Los Angeles, University of California Press].
SCHLUCHTER, Wolfgang (1989). Rationalism, Religion, and Domination: A Weberian Perspective. Berkeley/Los Angeles, University of California Press.
SCHLUCHTER, Wolfgang (1996). Paradoxes of Modernity: Culture and Conduct in the Theory of Max Weber. Stanford, Stanford University Press.
SCHWENTKER, Wolfgang (1996). A paixão como um modo de vida: Max Weber, o círculo de Otto Gross e o erotismo. Revista Brasileira de Ciências Sociais nº 32, ano 11, outubro: 163-176.
SICA, Alan (1988). Weber, Irrationality and Social Order. Berkeley, University of California Press.
SICA, Alan (1988-89). Weber and Mann. Telos nº 78, Winter: 130-135.
SICA, Alan (1993). Who now speaks for Weber? A Response do Burger. Theory and Society vol.22, nº 6, December: 837-843.
STRONG, Tracy B. (1987). Weber and Freud: Vocation and Self-Acknowledgement. In: MOMMSEN, Wolfgang J. & OSTERHAMMEL, Jürgen (orgs.). Max Weber and His Contemporaries. London, Unwin Hyman: 468-482.
TURNER, Bryan S. (1993). The Rationalization of the Body: Reflections on Modernity and Discipline. In: ——— Max Weber: From History to Modernity. London/New York, Routledge: 115-138, cap. 7.
WEBER, Max (1985). Religiöse Ethik und "Welt". In: Wirtschaft  und Gesellschaft. Tübingen, J.C.B. Mohr (Paul Siebeck): 348-367.. [Trad. bras. (1991). Ética religiosa e "mundo". In: Economia e Sociedade I. Brasília, Editora Universidade de Brasília: 385-404.]
WEBER, Max (1988a) Zwischenbetrachtung: Theorie der Stufen und Richtungen religiöser Weltablehnung. In: Gesammelte Aufsätze zur Religionssoziologie I (GARS I): 536-573. Tübingen, J.C.B. Mohr. [Trad. bras.: (1980). Rejeições religiosas do mundo e suas direções. In: Max Weber: textos selecionados. Coleção "Os Pensadores". São Paulo, Abril Cultural: 237-268.
WEBER, Max (1988b) Gesammelte Aufsätzse zur Wissenschaftslehre. Tübingen, J.C.B. Mohr (GAWL).
WEBER, Max (1992). The Protestant Ethic and the Spirit of Capitalism. London/New York, Routledge.
WEBER, Marianne (1995). Biografia de Max Weber. México, Fondo de Cultura Económica (tradução da tradução inglesa: (1988) Max Weber: A Biography. New Brunswick, NJ, Transaction Books.
WHIMSTER, Sam (1995). Max Weber on the Erotic and Some Comparisons with the Work of Foucault. International Sociology vol. 10, nº 4, December: 447-462.

Antônio Flávio Pierucci
pierucci@usp.br
Departamento de Sociologia da USP
São Paulo, se


[1] Foucault escreveu que o sexo só foi descoberto no século XIX. Entenda-se: foi somente com o aparecimento das tecnologias médicas e psicanalíticas da sexualidade que se desenvolveu um discurso sobre o sexo como atividade humana específica  (Foucault, 1977).
[2]  Sobre o significado e as "fatais" implicações do uso da idéia de "destino" na sociologia de Max Weber, vide Cohn (1979: 110-113).
[3]  T. Caplow disse de Simmel que era "não tanto um filósofo, quanto um filosofante" (Caplow, 1968).
[4] Trata-se da nota 22 do capítulo final d' A Ética protestante e o espírito do capitalismo, na qual Weber aponta para a existência de um paralelo entre o racionalismo puritano da sexualidade e o higienismo sexual em voga (Vide GARS I: pp. 170-171; na tradução para o inglês de Talcott Parsons: pp. 263-264; na tradução  brasileira: pp. 205-206). Esta nota foi inserida tardiamente por Max Weber, na versão final d'A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, preparada para a edição dos Ensaios Reunidos de Sociologia da Religião (Gesammelte Aufsätze zur Religionssoziologie, GARS) cujo primeiro tomo, dedicado à sua mulher Marianne Weber com uma jura de amor conjugal eterno "até o pianíssimo da velhice" [bis ins Pianissimo des höchsten Alters], saiu em 1920, ano da prematura morte de Max (GARS I, 1920). Não custa registrar, a propósito, que os dois outros volumes contendo os ensaios de sociologia da religião foram dedicados a duas outras mulheres que Max Weber amou e admirou: o tomo II foi dedicado a Mina Tobler e o terceiro, a Else Jaffe-Richthofen.
[5] No presente artigo, as citações da "Reflexão intermediária" (Zwischenbetrachtung) serão da edição alemã  do primeiro tomo dos Gesammelte Aufsätze zur Religionssoziologie (GARS). As referências se valerão portanto da seguinte abreviatura: ZB:GARS I: nº  da página.
[6] "Em lugar de um estado sagrado agudo e extraordinário, e por isso passageiro, conseguido por meio da orgia, da ascese ou da contemplação, a meta racional da religião de salvação, formulada abstratamente, tem sido a de assegurar ao que é salvo um hábito duradouro e, por isso, assegurador da salvação" (ZB: 540-541). Ou seja: religião de salvação [Erlösungsreligion] é impensável sem ética. Ela é uma ética religiosa, por conseguinte. Em termos weberianos, ela equivale idealtipicamente à ascese racional ativa, "a qual rejeita o sexo por causa de sua irracionalidade e que é sentida pela erótica como um poder mortalmente inimigo" [von der Erotik als todfeindliche Macht empfunden wird] (ZB: 561).
[7] A repetida leitura da "Reflexão intermediária" [Zwischenbetrachtung] e sobretudo minha progressiva impregnação com o tratamento agonístico-antagonístico que aqui é dado à questão do amor sexual, e, ademais, procurando levar devidamente em conta o ponto de vista em que se posta Weber para este tratamento, está me deixando seriamente desconfiado de que o nosso autor tentava tortuosamente dar aqui uma resposta sociológica, seja dito, uma solução do ponto de vista dos agentes sociais portadores do erotismo como um valor salvífico, à pergunta posta por Nietzsche na Genealogia da moral a respeito da possibilidade de cientificamente se encontrar "o antagonista natural do ideal ascético" e que, conforme lembra Gabriel Cohn, se traduz na questão mais geral: "Onde está a vontade adversária, em que se exprime o ideal adversário?" (Cohn, 1979: 110). Não seria?
[8] Sempre que citado este ensaio, será com base na edição alemã dos ensaios reunidos de teoria da ciência, Gesammelte Aufsätzse zur Wissensachtslehre (GAWL), e referido pela abreviatura WL: nº da página.
[9] Para a distinção dos usos weberianos dos sintagmas "conduta de vida"e "estilo de vida", vide Schluchter, 1996.
[10] Ou, como preferem muitas traduções para o português, do "ascetismo secular".

0 comentários:

 

Copyright © 2010 Uma Jovem Marxista, All Rights Reserved. Design by DZignine