"Luta de Classes Ou Ódio Entre As Classes?", por Errico Malatesta.



Por Errico Malatesta, retirado do periódico anarquista ‘A Plebe’ (São Paulo), 27 de maio de 1922, número 182, página 2. 

EU PRONUNCIEI, NA PRESENÇA DOS JUÍZES DE MILÃO, algumas palavras sobre a luta de classes e sobre o proletariado, palavras que tiveram a virtude de suscitar críticas e exclamações. Acho conveniente dizer mais alguma coisa sobre o assunto. 

No tribunal protestei indignadamente contra a acusação que me faziam de “haver incitado o povo ao ódio”. Expliquei, então, como na propaganda das minhas idéias tinha procurado sempre demonstrar que os males sociais não dependem da malvadez deste ou daquele patrão, deste ou daquele governante, mas sim da instituição do próprio patronato e do governo, e que, portanto, não se podem remediar os males mudando as pessoas dos dominadores – o que é necessário é destruir o principio da dominação do homem pelo homem. Afirmei também que sempre tinha insistido no fato de que, pessoalmente, os proletários não são melhores do que os burgueses. E a prova é que quando por qualquer circunstância um operário consegue atingir uma posição de riqueza e de mando, se conduz geralmente como um burguês ordinário e dos piores. 

Essas declarações foram adulteradas, confundidas e publicadas na imprensa burguesa; e compreende-se muito bem que assim tinha sucedido. A imprensa subvencionada para defender os interesses da política e dos tubarões tem por dever de ofício de esconder a verdadeira natureza do anarquismo, dando credito à lenda do anarquismo odiento e destruidor. E faz isto por exigências do ofício. Devemos convir, porém, que amiúde procede assim, de boa fé, por pura e simples ignorância. Desde que o jornalismo, que foi um sacerdócio, passou à condição de indústria e de ofício, os jornalistas não só perderam o senso moral como também a honestidade intelectual, que consiste em não se falar daquilo que não se sabe. 

Deixemos, porém, os venais no lodo e falemos daqueles que, embora divirjam de nós nas ideias e, frequentemente, só no modo de exprimi-las, são os nossos amigos porque caminham para o mesmo fim que nós caminhamos. 

Nestes indivíduos a estupefação é completamente injustificada até ao ponto, que não me repugna acreditar, de julgá-la afetada. Eles não podem ignorar que eu venho dizendo e escrevendo estas coisas há cinquenta anos; e que, comigo e antes de mim, as disseram e repetiram centenas e milhares de anarquistas.

Errico Malatesta
Mas vamos ao desacordo. Existem os "proletários", isto é, os operários que julgam que pelo fato de terem calos nas mãos, isso significa uma divina infusão de todos os méritos e de todas as virtudes, e que protestam, se alguém tiver o atrevimento de falar do povo e de humanidade, esquecendo-se de jurar sobre o sagrado nome do proletariado. 

É verdade que a história fez do proletariado o instrumento principal da próxima transformação social. Assim, aqueles que lutam pelo advento duma sociedade na qual todos seres humanos sejam livres e tenham assegurados os meios para exercer a liberdade, devem apoiar-se principalmente no proletariado. 

Visto que o equiparamento das riquezas naturais e do capital, produzidos pelo trabalho das gerações passadas e presentes, é hoje a causa principal da sujeição das massas e de todos os males sociais, é natural que aqueles que nada possuem sejam os que, em conseqüência de sua miséria, se sintam mais direta e evidentemente interessados em que se ponham em comum os meios de produção, constituindo assim os agentes naturais da exploração. É por isso que dirigimos a nossa propaganda muito especialmente aos proletários e àqueles que, pelas condições em que se encontram, não têm possibilidades de chegar por si próprios – por meio da reflexão e do estudo – a conceber um ideal superior. Mas, para isto, não é necessário fazer do pobre um fetiche pelo simples fato de ele ser pobre, nem alentar nele a crença de que é duma essência superior, nem que, por uma condição que não é certamente fruto do seu mérito nem da sua vontade, tenha conquistado o direito de fazer aos outros o mal que os outros lhe tenham feito. A tirania das mãos calejadas (que, na prática, é sempre a tirania de uns poucos que, se alguma vez tiveram calos, os deixaram desaparecer) não será menos dura, menos ignominiosa, menos fecunda em males duradouros, do que a tirania das mãos enluvadas. O que ela será é menos ilustrada e mais dura: eis tudo. 

A miséria não seria tão horrível como é, se além dos males materiais e da degradação física, não produzisse também, ao prolongar-se de geração em geração, o embrutecimento moral. E os pobres têm vícios distintos que não são melhores que os que o poder e a riqueza ocasionam nas classes privilegiadas. 

Se a burguesia produz os Giolitti, os Graziani e toda a comprida série de tiranos da humanidade, desde os grandes conquistadores até os pequenos patrões ambiciosos e usurários, produz também os Reclus, os Cafiero, os Kropotkine e tantos outros que em todas as épocas têm sacrificado os seus privilégios de classe em homenagem a um ideal. Se o proletariado tem dado e continua a dar tantos heróis e tantos mártires à causa da redenção humana, dá também os guardas brancos, os assassinos, os traidores aos próprios irmãos, sem os quais a tirania burguesa não poderia durar um único dia. 

Como, pois, se pode elevar o ódio a princípio de justiça, a iluminado sentimento de reivindicação, quando é evidente que o mal está em toda a parte e depende de causas alheias à vontade e à responsabilidade individual? 

Faz-se quanta luta de classes se quiser, se por luta de classe se entende a luta dos explorados a fim de abolir a exploração. Ela é um meio de elevação moral e material e a principal força revolucionária com que hoje se pode contar. Mas propagandear o ódio não, porque do ódio não podem brotar o amor e a justiça. Do ódio nascem a vingança, o desejo de imperar sobre o inimigo, a necessidade de consolidar a própria superioridade. Com o ódio se obtém um triunfo, podem-se construir novos governos, mas não se pode fundar a anarquia. 

Compreendemos bem o ódio em tantos desgraçados que a sociedade tortura, tubercolizando-lhes os corpos e destruindo-lhes os afetos. Logo, porém, que o inferno em que vivem seja iluminado por um ideal, desaparece do seu íntimo o ódio, para dar lugar ao ardente desejo de lutar pelo bem de todos. 

É por isso que entre nós não há verdadeiros odientos: há apenas retóricos do ódio. E mesmo estes indivíduos procedem como o poeta que, sendo um pai de família exemplar e pacífico, canta o ódio e prega a destruição, porque encontra nisso a emoção para fazer versos bons... Ou maus. Falam do ódio, é certo; mas o seu ódio é feito de amor. 

Eu amo-os porque os compreendo. Ainda que falem mal de mim.

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