A
mensagem literária dirige-se hoje para um homem que vive numa época de
especialização, que exige o culto às ciências naturais como o único digno de
si. Partindo dessa premissa, uma evidência nos aponta: encontramos médicos,
engenheiros e advogados, mas não o “homem” inserido nessas profissões. Essa
especialização diferencia-os do resto da humanidade. Submergidos em suas atividades
estes não têm oportunidade para serem no meio dos homens, “iguais entre
iguais”.
A especialização é o signo de
nossa época. O gigantesco desenvolvimento do conhecimento nas ciências
naturais, a centralização de esforços dos Institutos Universitários em torno
das pesquisas físicas longe de prescindirem de um sentido humano à sua
atividade, colocam-no com mais dramaticidade.
É o espantoso desenvolvimento das
ciências naturais que revela o fato do homem achar-se num período de transição.
Os velhos valores fenecem e os novos não foram ainda encontrados. Esse vácuo é
preenchido pela incerteza do homem quanto ao seu destino [1]
Numa época de especialização [2]
, a literatura define os ideais de um período de crise e transição. Daí toda
grande obra literária ser de um período de transição (veja-se a importância da
mensagem de Dante, Dostoievski ou Kafka).
Pois é nesses períodos que se põe
dramaticamente ao homem essa interrogação: qual o sentido de sua vida, qual a
significação do mundo que o cerca?
O médico, engenheiro, advogado,
encarnam especializações necessárias ao exercício de suas atividades, mas têm
em comum, um atributo, o de serem humanos e o de enfrentarem idênticos
problemas numa sociedade em transição.
Somos filhos de uma sociedade
individualista e liberal e caminhamos para um outro tipo de sociedade
planificada. Como dar-se-á tal mudança? Quais os agentes desse processo? Não o
sabemos. O que sabemos é que assistimos a um espetáculo de crise, de transição,
onde os velhos quadros sociais desaparecem e os novos ainda não se
estruturaram.
A literatura é uma forma de
resposta a essa interrogação. Ela, pelos escritos de Homero transmitia-nos uma
mensagem corporificando um tipo de homem: o cavaleiro e o nobre; pela pena de
Hesíodo, transmitia-nos uma ética do trabalho e sua dignificação como sentido
da vida [3] . Os escritos de Joyce, Kafka e Faulkner, constituem uma mensagem
adequada aos tempos novos: as formas clássicas do romance estão fenecendo; cabe
ao homem descobrir uma nova linguagem para exprimir novas experiências de uma
nova vida [4] .
De todas as formas de arte a
literatura é a mais próxima da vida e a mais sintética, pois reúne a
arquitetura, quando no processo de composição do romance, a música, na
estrutura melódica da frase, a pintura, no traçar o caráter dos personagens, a
filosofia, ao definir seus ideais de vida. Daí sua importância para a cultura.
Sendo ela acessível aos
diferentes especialistas, poderá formular novas formas de ação ética e padrões
morais. Como um sismógrafo poderá ela captar o sentido interno da mudança que
se opera no mundo. Para tal, conta com a intuição artística, que faz com que as
mudanças sejam pressentidas antes pelos seus possuidores, passando depois aos
campos sistemáticos do conhecimento.
A transição do século XIX e XX
foi assinalada, em primeiro lugar, pelos impressionistas, pelo naturalismo
literário e posteriormente pelos teóricos de política, economia e filosofia.
A literatura pertencendo a um dos
campos assistemáticos do conhecimento tem esse poder. Pode auscultar as
mudanças que se operam no mundo e pela imaginação de seus grandes nomes,
definir ao homem comum, novos caminhos.
Se não conseguir formulá-los com
nitidez, pelo menos servirá como testemunho de uma época. A época que produz
Camus, Kafka e Faulkner [5] , já escolheu seu destino: eles testemunham por
ela.
Na época moderna à literatura
cabe um papel integrador. O papel de superar o abismo existente entre a arte e
a vida, arte e ciência, na medida em que ela mesma é concebida como uma forma
de conhecimento dessa totalidade, que é o homem.
Cabe ao escritor viver plenamente
sua época, pois só atinge a grandeza, aquele que sentiu seu próprio tempo. Este
é o segredo da universalidade de um Goethe, Balzac ou Cervantes.
Nessa tentativa de traçar com
lucidez os quadros do mundo, onde se desenrola o drama humano, num período de
transição, é que a literatura deixará de ser o “sorriso da sociedade”, para ser
testemunho de uma época, uma mensagem acessível a todos, que permitia ao homem
independente de sua especialidade sentir-se junto ao seu semelhante, como
“igual entre iguais”, cumprindo um sábio preceito chinês.
Se as profissões diferenciam o
homem, cabe à arte uní-lo em torno de ideais comuns. Isso ela pode fazê-lo,
pois sua linguagem é universal e a condição humana idêntica em toda a face da
terra.
* Licenciado em História pela
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo.
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* - Trabalho premiado – prêmio
Graciliano Ramos – no concurso de literatura para os universitários do país,
instituído pelo Ministério de Educação e Cultura e pela revista O Cruzeiro,
conforme sua publicação de 2-1-60.
[1] - A respeito da incerteza do
homem quanto ao seu destino individual, num mundo em mudança, existe uma vasta
bibliografia, cujos pontos de vista mais relevantes aparecem expostos em:
S. Freud – Civilisation and its discontents. Londres,
1930.
J. Ortega y Gasset – La rebelión
de lãs massas. Madri, 1930.
Huizinga – Entre las sombras Del
mañana. Madri, 1936.
Niebuhr – Moral and imoral society. A study in
ethics and politics. Nova York, 1932.
Os trabalhos acima estão pautados
por uma visão romântica e pessimista ante os problemas da técnica numa
sociedade de massas e suas repercussões morais, políticas e econômicas.
Uma posição mais construtiva e
realista em relação aos mesmos fenômenos se encontrará em:
Karl Mannheim – Libertad y
Planificacion Social. México,
1946.
Karen Horney – The neurotic personality of our
time. Londres, 1937.
Erich Fromm – Psicanálise da
sociedade contemporânea. São Paulo, 1959.
[2] - A respeito da tendência
irrecorrível de nossa civilização à especialização, veja-se Gerth e Mills –
“From Max Weber”, cap. Science as vocation. Londres, 1955.
[3] - Sobre a importância da literatura como
“formação do homem” em Homero e Hesíodo, veja-se, Werner Jaeger – Paidéia – I
Volume,\ págs. 53-93. México, 1955.
[4] - O “tipo ideal” de romance
construído arquitetonicamente é o de Balzac. “La Commedie Humaine ”
representa o ideal linear do romance do século XIX. Com “Lês Faux Monnayeurs”
de A. Gide, este esquema de desenvolvimento linear da ação do romance deixa
lugar à simultaneidade das ações. Esta ruptura com a construção tradicional de
romance é salientada por Claude Edmonde-Magny quando escreve: “en écrivant “Les
Faux Monnayeurs”, ce modèle de “sur-roman”, Gide refuse la conception
traditionelle du genre, avec une vigueur, à peine moins grande, que celle de
son ami Paul Ambroise” in “Histoire du roman français depuis de 1918, pág. 229.” Paris, 1950. Joyce
representa uma nova experiência construtiva utilizando um tema clássico.
Diferentemente dos modernos é introspectivo. O monólogo interior é a razão de
Dédalo, é uma forma de existência. Joyce lançou essa técnica já descoberta
anteriormente por um francês, Edouard Dejardin. Antes de Joyce, já o inglês
Stephen Hudson dele já fazia uso. Até o nosso semiconhecido Adelino Magalhães já
o usava.
[5] - Em Faulkner o diálogo não é
uma relação entre duas consciências, é uma relação com vistas à ação. Ele não
exclui inteiramente o monólogo, como por exemplo em “Tandis que j’agonise”.
Nota Claude Edmonde Magny, que “chez Faulkner l’analyse intérieure alterne
perpetuellement avec l’énoncé des comportements” in L’Age du roman americain,
pág. 50. Paris, 1948. No entanto, sua obra, como a de Hemingway, Dos Passos e
Caudwel estrutura-se sob modelos behaivoristas inspirados na técnica do cinema
norte-americano. A respeito das influências do cinema no romance americano e
franc6es após-guerra, veja-se as pertinentes observações de Magny, ob. cit.,
pág. 11.
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