Estudantes e Trabalhadores no Maio de 68, por João Bernardo*.



Resumo:O Maio de 68 é geralmente apresentado como uma movimentação estudantil,esquecendo que ocorreu então a maior greve geral da história da França. Este artigo pretende mostrar que a temática da classe trabalhadora e da exploração capitalista  mesmo na componente estudantil do movimento.
* João Bernardo nasceu em Portugal em 1946. É doutor pela Unicamp e desde 1984 tem sido convidado a leccionar em várias universidades brasileiras. É autor de numerosos livros e artigos. Seu último livro é Capitalismo Sindical (São Paulo: Xamã, 2008) em co-autoria com Luciano Pereira.

Neste artigo reproduzo os principais temas que expus numa palestra
efectuada no Colóquio Internacional Maio’68, realizado no Instituto Franco-
Português, em Lisboa, em 11 e 12 de Abril de 2008. Devo prevenir que me
restringi à documentação emanada dos estudantes da Universidade de Paris,
excluindo os alunos dos liceus, o que implica dois inconvenientes. Em primeiro
lugar, o movimento de contestação foi mais radical em algumas outras cidades,
especialmente em Nantes, e, além disso, a adesão dos liceus ao movimento
constituiu um sintoma de descontentamento muito significativo. Os leitores não
devem esquecer que o artigo é condicionado por estes dois limites.
O desenvolvimento do capitalismo, com as pressões para o aumento da
produtividade e, portanto, com a necessidade de qualificar a força de trabalho, converteu universidades de elite em universidades de massa e transformou a maioria dos estudantes universitários em futuros trabalhadores. Foi esta a principal determinante das lutas estudantis ocorridas um pouco por todo o mundo a partir dos meados da década de 1960. No entanto, tanto quanto conheço os panfletos do Maio de 68 não revelam uma consciência clara desta transformação. Em todo o acervo documental que consultei só deparei com uma excepção, um documento de 5 de Maio emanado da Juventude Comunista Revolucionária (JCR, Jeunesse Communiste Révolutionnaire, trotskistas da facção de Mandel), que ao mesmo tempo que protesta “contra um sistema universitário assente numa selecção que impede que os filhos dos trabalhadores tenham acesso à Universidade” reclama igualmente “contra a especialização estreita dispensada no secundário e na Universidade, que prepara para
a exploração capitalista trabalhadores sub qualificados, sujeitos ao desemprego e aos baixos salários”. Salvo esta excepção, nos documentos que conheço o movimento foi apresentado como uma recusa ao exercício de funções gestoriais, quando na realidade se tratava, para a grande maioria dos estudantes, da impossibilidade de exercer essas funções, porque eles estavam a ser preparados para trabalhadores qualificados e não já − ou não só − para gestores. Eis um interessante caso de desfasamento entre prática e ideologia, mas não é minha intenção analisá-lo aqui.
É comum considerar que naquela época existiam nos meios estudantis
contestatários duas orientações ideológicas. Uma, inspirada pelas obras de
Marcuse, considerava que a classe operária tinha sido integrada na sociedade
capitalista através do consumismo e que o elemento revolucionário eram os
jovens de diversas origens sociais, vítimas de uma multiplicidade de opressões. A outra, seguindo a tradição marxista, sustentava que a classe operária continuava a ser a classe revolucionária. Na documentação de Maio e Junho de 1968 os traços da orientação marcusiana são praticamente inexistentes, e isto mesmo antes de a greve geral ter mostrado que a classe trabalhadora mantinha um carácter revolucionário. Desde o começo do movimento que encontramos nos jornais e panfletos três temas principais: a recusa de uma universidade ao serviço do capital, a defesa dos interesses dos trabalhadores no interior da universidade e a aliança entre intelectuais e trabalhadores.
Já na jornada de protesto ocorrida a 22 de Março em Nanterre (um centro
universitário pertencente à Universidade de Paris mas situado nos arredores
da cidade), que deu início ao que viria a ser o Movimento do 22 de Março
(Mouvement du 22 Mars, que reunia várias correntes libertárias e maoístas
espontaneístas) os temas debatidos foram a questão do imperialismo, na época
indissociável da guerra no Vietnam, o carácter do capitalismo contemporâneo e
o problema de saber como é que as lutas estudantis se ligavam às lutas operárias.
Nesse dia 22 um panfleto convocando um debate para 29 de Março enunciava
a seguinte ordem de trabalhos: “O capitalismo em 68 e as lutas operárias. Universidade
e universidade crítica. A luta anti-imperialista. Os países de Leste a as lutas operárias e
estudantis nestes países”. Estava assim preparado o pano de fundo do que iria ser a
insurreição estudantil de Maio desse ano.
Num panfleto de 4 de Maio afirmou o Movimento do 22 de Março:
Nós batemo-nos [...] porque recusamos tornar-nos: - professores ao serviço
da selecção no ensino, selecção feita à custa dos filhos da classe operária, -
sociólogos fabricantes de slogans para as campanhas eleitorais governamentais,
- psicólogos encarregados de fazer “funcionar” as “equipas de trabalhadores”
segundo os interesses superiores dos patrões, - cientistas cujo trabalho de
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pesquisa será utilizado de acordo com os interesses exclusivos de uma economia
de lucro. [...] Recusamo-nos a melhorar a universidade burguesa. Queremos
transformá-la radicalmente para que de agora em diante ela forme intelectuais
que lutem ao lado dos trabalhadores e não contra eles [...] Queremos que os
interesses da classe operária sejam defendidos também na universidade.
Estes temas foram retomados textualmente no Action nº 1, de 7 de Maio, o
jornal da insurreição estudantil, que apareceria depois como órgão dos Comités
de Acção (Comités d’Action); neste primeiro número o jornal afirmou também:
“Aqueles que lutam contra a universidade capitalista encontraram-se lado a lado
com aqueles que lutam contra a exploração capitalista”. No mesmo dia 7 de Maio
proclamou um panfleto dos Comités de Acção Universitária (Comités d’Action
Universitaire): “Os estudantes recusam-se, e cada vez mais se recusarão, a ser os
futuros agentes da burguesia. Eles cada vez mais serão solidários com as lutas dos
trabalhadores. [...] A universidade que queremos é a de todos os trabalhadores”.
Um panfleto com data de 8 de Maio, emanado do Movimento do 22 de
Março e do Comité de Acção dos Liceus (Comité d’Action Lycéen) insistiu: “[...]
estudantes recusam tornar-se quadros cúmplices e beneficiários da exploração
dos trabalhadores. [...] Nós não queremos ser os cães de guarda do Capital”. Foi
nesta perspectiva que o panfleto de 10 de Maio dos Comités de Defesa Contra
a Repressão (Comités de Défense contre la Répression) intitulado Vive l’Unité
des Ouvriers et des Étudiants à leur Service! criticou os sociais-democratas como
Mitterrand, que procuravam aproveitar o movimento para navegar na crista da
onda: “Eles querem que os operários lutem por uma Sorbonne que forme os
seus exploradores. Que absurdo! Que sinistra conspiração!”.
Até o organismo de juventude do Partido Socialista Unificado (PSU, Parti
Socialiste Unifié, um pequeno partido situado na ala esquerda do socialismo;
note-se que naquela época os socialistas franceses estavam muito fragmentados),
apesar de participar nas manobras em torno de Mendès-France e de Mitterrand,
afirmou num panfleto de 10 de Maio: “[...] o que nos interessa é combater a
universidade burguesa, é desmontar a grande máquina de opressão intelectual
[...]”. A 13 de Maio, no nº 2 de Action, lê-se:
Queremos que a política, isto é, a organização da vida social, resulte da vontade
dos trabalhadores. [...] As relações estabelecidas com os trabalhadores na luta,
o número crescente de estudantes, as novas funções desempenhadas pela
Universidade colocam-na num dos lugares mais estratégicos de uma sociedade:
o lugar onde ela assegura o seu desenvolvimento e a sua reprodução.
Entretanto começara a greve geral, e o panfleto de 14 de Maio do Comité de
Acção Operários-Estudantes (Comité d’Action Ouvriers-Étudiants), endereçado
aos operários da Rhône-Poulenc, anunciou:
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Até agora haviam-nos imposto uma educação burguesa cujo conteúdo não
podíamos contestar. Preparavam-nos desse modo para sermos futuros quadros
e os instrumentos da vossa exploração. [...] Contestámos o próprio objectivo do
ensino. Entre os vossos problemas e os nossos existem semelhanças profundas.
Quem decide as normas e as cadências? Quem decide os objectivos da produção?
A regra é por todo o lado a mesma, só nos pedem que executemos as ordens
da hierarquia.
Para encerrar uma lista que podia continuar interminavelmente, destaco
algumas passagens de um longo panfleto que o Movimento do 22 de Março dirigiu
aos trabalhadores, intitulado Votre Lutte Est la Notre! e emitido a 24 de Maio:
No ensino superior existem 10% de filhos de operários. Será que nós lutamos
para aumentar este número [...]? Seria melhor, mas não é isso o mais importante.
[...] Que um filho de operário possa tornar-se director, não é esse o nosso
programa. Queremos suprimir a separação entre trabalhadores e operários
dirigentes [sic].
Depois de protestar contra as funções directivas que os licenciados iriam
desempenhar ao serviço do capital, o texto continua:
Recusamo-nos a ser utilizados em benefício da classe dirigente. Queremos suprimir

a separação entre trabalho de execução e trabalho de reflexão e de organização.
Queremos construir uma sociedade sem classes, e o sentido da vossa luta é o
mesmo. [...] A forma da vossa luta oferece-nos, a nós estudantes, o modelo da
actividade realmente socialista: a apropriação dos meios de produção e do poder
de decisão pelos trabalhadores. A vossa luta e a nossa luta são convergentes.
A recusa a exercer funções de autoridade sobre a classe trabalhadora, a recusa
de uma universidade ao serviço do capitalismo e a identificação dos interesses dos
estudantes com os dos trabalhadores, foram estes os temas principais, quando
não mesmo únicos, da imprensa estudantil no Maio de 68.
Compreende-se assim que as palavras de ordem da manifestação de 6 de
Maio tivessem sido tanto “Liberdade para os nossos camaradas” e “A Sorbonne para os
estudantes” como “Estudantes solidários dos trabalhadores”. Na grande manifestação
de 7 de Maio, avaliada em 50.000 pessoas, a faixa que encabeçava o desfile
proclamava: “Os estudantes com os trabalhadores”.
Todavia, se os estudantes contestatários eram unânimes quanto à necessidade da
união com os trabalhadores, esta aliança era encarada de várias maneiras no espectro
político, e mais uma vez é revelador que o principal tema de discordância resultasse
do reflexo do movimento operário no interior do movimento estudantil.
- O organismo de juventude do Partido Socialista Unificado defendia que
os trabalhadores científicos e intelectuais se colocassem “ao lado” dos operários.
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Esta corrente posicionava-se contra o que considerava o obreirismo das outras
componentes do movimento. Havia no Partido Socialista Unificado uma clara
consciência de jovens tecnocratas, procurando uma aliança com os trabalhadores,
mas nos seus próprios termos.
- A Federação dos Estudantes Revolucionários (Fédération des Étudiants
Révolutionnaires, trotskistas da facção de Lambert) defendia a aliança da União
Nacional dos Estudantes de França (UNEF, Union Nationale des Étudiants de
France, o sindicato estudantil) e das centrais sindicais. Para esta corrente, uma das
mais burocratizadas do trotskismo, a união entre estudantes e trabalhadores era
considerada como uma coligação de aparelhos sindicais.
- Para a JCR não se tratava de unir a UNEF às burocracias sindicais
operárias. Contrariamente aos lambertistas, a corrente mandeliana defendia que
a convergência das lutas estudantis e operárias se devia fazer não através das
negociações entre dirigentes sindicais mas na rua, nos confrontos com a polícia.
Seria nesses confrontos que se revelaria a vanguarda. Por vezes perpassa nos
textos da JCR uma certa ideia difusa de uma Internacional da Juventude, que
pusesse em causa as velhas burocracias dos partidos operários e dos sindicatos.
- Os Comités de Acção defendiam uma solidariedade entre estudantes e
trabalhadores em luta que consistisse numa unidade real de base, assente na livre
discussão democrática dos problemas de cada categoria.
- Em clara contraposição a estas duas últimas correntes, a União das
Juventudes Comunistas marxistas-leninistas (UJCm-l, Union des Jeunesses
Communistes marxistes-léninistes, maoísta), também conhecida pelo nome do
seu órgão, Servir le peuple, defendia a subordinação das lutas estudantis às lutas
dos trabalhadores. Numa declaração de 4 de Maio a UJCm-l propôs: “Na sua luta
contra a repressão os estudantes devem unir-se resolutamente às vastas massas populares, e em
especial à classe operária, que desde há muito tempo combatem o mesmo inimigo. Devem pôr-se
ao serviço dos trabalhadores, principal força da revolução”. A UJCm-l e as organizações
que ela controlava ou inspirava não se cansaram de insistir na subordinação das
lutas dos estudantes às lutas dos trabalhadores, e os Comités de Defesa Contra
a Repressão, no panfleto de 10 de Maio intitulado Vive l’unité des ouvriers et des
étudiants à leur service!, que citei há pouco, lançaram a palavra de ordem “Viva a
direcção das lutas populares pelos operários!”.
- Quanto ao Movimento do 22 de Março, na Tribune du 22 mars lê-se num
artigo com data de 3 de Junho:
Na organização revolucionária em construção no processo actual não haverá
mais estudantes, nem operários, nem camponeses, nem empregados, etc., mas
somente “intelectuais-revolucionários”, e é para que surjam estes “intelectuaisrevolucionários”
que trabalha o 22 de Março (“intelectuais-revolucionários” é
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aqui empregue à falta de outra coisa que deve ser inventada, porque não se trata
evidentemente dos intelectuais que hoje conhecemos.
No plano da consciência política, não creio que se tenha ido mais longe no
Maio de 68, porque está aqui claramente expressa a ideia de Marx da superação do
proletariado através do movimento revolucionário. Convenientemente esquecido
pelas burocracias sindicais, que dependem da continuação dos trabalhadores
na sua condição de explorados, e esquecido também por aqueles partidos de
esquerda que atacam o capitalismo privado só porque pretendem instalar um
capitalismo de Estado, e que por isso precisam de proletários antes como depois,
o tema da superação do proletariado encontra-se fundido neste artigo da Tribune
du 22 mars com o tema da apropriação pelos trabalhadores do controlo sobre a
produção. Os “intelectuais-revolucionários” cujo aparecimento é evocado neste
artigo são os seres humanos de uma sociedade sem classes.
A diversidade das formas como era encarada a união entre estudantes e
trabalhadores explica as alternativas práticas colocadas no começo do movimento.
As correntes mais moderadas apelavam para que os trabalhadores se manifestassem
no Quartier Latin (o conjunto de bairros em torno da Sorbonne). Era a posição
defendida pela UNEF, que num panfleto de 8 de Maio convocava “os trabalhadores
a participarem nas manifestações organizadas pela UNEF”. E ainda numa data tardia
uma declaração do PSU “convoca todos os trabalhadores a participarem na segunda-feira,
27 de Maio, nas manifestações organizadas pela UNEF [...]”. Outras correntes, pelo
contrário, convocavam os estudantes a manifestar-se nos bairros populares, onde
se poderiam ligar à luta dos trabalhadores. Foi o que sucedeu, por exemplo, num
panfleto distribuído no dia 4 ou 5 de Maio pelos Comités de Defesa Contra a
Repressão, de novo num panfleto de 7 de Maio e, também a 7 de Maio, num
panfleto da UJCm-l. A 8 de Maio Cohn-Bendit declarou num comício, em nome
do movimento a que pertencia: “O Movimento do 22 de Março decidiu não prosseguir a
luta contra a repressão policial apenas no Quartier Latin, mas em todo o Paris”.
Mesmo as ocupações de faculdades foram consideradas pela ala radical do
movimento estudantil como a reprodução de uma forma de luta caracteristicamente
operária. Um panfleto do Movimento do 22 de Março emitido a 6 de Maio
afirmou que “os estudantes utilizam de agora em diante os métodos de luta dos sectores mais
combativos da classe operária”. Mais tarde, num apelo do Movimento do 22 de Março
destinado a estimular a formação de Comités de Acção Revolucionária lê-se:
Seguindo o caminho traçado pelos operários de Caen, de Mulhouse, de Le Mans,
de Redon, da Rhodia [um grupo industrial centrado em Besançon], de Paris, os
alunos das universidades e dos liceus e os trabalhadores que se manifestaram
contra a repressão do Estado policial na noite de sexta-feira, 10 de Maio de
1968, lutaram na rua durante várias horas contra 10.000 polícias. [...] A 13 de
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Maio, estudantes e operários encontraram-se de novo na rua, iniciaram uma
discussão política conjunta e, para prossegui-la, ocuparam permanentemente
as faculdades da Universidade de Paris. A partir de então multiplicaramse
as greves com ocupação das fábricas. Para que triunfem as reivindicações
de todos os trabalhadores, para atingirmos realmente os nossos objectivos,
para prepararmos na acção quotidiana a tomada do poder pelo proletariado,
trabalhadores e estudantes, organizemo-nos nos locais de trabalho em
comités de acção revolucionária.
O documento que acabei de citar é interessante também pelo facto de
estabelecer uma relação entre os acontecimentos antes e depois do dia 13 de
Maio. Com efeito, a orientação que pretendia colocar a luta dos estudantes sob a
condução da luta dos trabalhadores demonstrou a sua justeza quando começou
a maior greve geral da história da França. Convocada para 13 de Maio, a greve
alastrou e ao iniciarem-se as negociações de Grenelle, em 25 de Maio, havia
praticamente 9 milhões de grevistas.
A 13 de Maio, na grande manifestação que juntou cerca de um milhão de
pessoas, a maior realizada até então em Paris, operou-se pela primeira vez a junção
entre estudantes e trabalhadores em nome da solidariedade contra a repressão.
À frente do cortejo, e depois de várias escaramuças entre estudantes e dirigentes
sindicais, ia uma faixa proclamando “Estudantes, professores, trabalhadores solidários”.
Na primeira fila estavam representantes da Confederação Geral do Trabalho (CGT,
Confédération Générale du Travail, a principal central sindical, hegemonizada pelo
Partido Comunista), da Confederação Francesa Democrática do Trabalho, (CFDT,
Confédération Française Démocratique du Travail, central sindical de origem
cristã), da Federação da Educação Nacional (FEN, Fédération de l’Éducation
Nationale, que reunia os sindicatos de professores), da UNEF, do Sindicato
Nacional do Ensino Superior (SNESup, Syndicat National de l’Enseignement
Supérieur) e do Movimento do 22 de Março. De início a direcção da CGT tentou
enquadrar os trabalhadores e impedi-los de contactarem com os estudantes, mas
não o conseguiu e os estudantes inseriram-se na manifestação operária.
O movimento a que erradamente se chama Maio de 68 teve dois períodos,
articulados pelo dia 13 de Maio, e os acontecimentos mais importantes
prolongaram-se até Junho. O primeiro período caracterizou-se pelo reflexo da
problemática operária no interior do movimento estudantil. Até ao começo da
greve geral os estudantes conduziram uma luta inspirada fundamentalmente por
um tema muitíssimo mais vasto do que a universidade, o tema da exploração
capitalista. Este primeiro período era como o arco de uma ponte projectado
sobre o vazio e a que faltava o pilar. Este pilar foi conseguido no segundo
período. Iniciado a 13 de Maio, o segundo período teve como característica
fundamental o choque entre a burocracia da CGT, que a todo o custo se esforçou
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por impedir a união dos estudantes com os trabalhadores, e a luta dos estudantes
para superar este obstáculo e se unirem aos trabalhadores em greve. Note-se que
aquela atitude caracterizou especificamente a CGT, porque a CFDT revelou-se
favorável a uma aliança entre trabalhadores e estudantes e no dia 20 de Maio
realizou uma conferência de imprensa em conjunto com a UNEF, proclamando
que a luta dos estudantes e a dos trabalhadores era uma só. No dia seguinte a
CFDT insistiu no tema, afirmando num comunicado que os trabalhadores e os
estudantes prosseguiam o mesmo combate.
No dia 13 de Maio uma Assembleia Geral decidiu que a Sorbonne ficaria
permanentemente aberta a todos os trabalhadores e converteu a Universidade de
Paris em Universidade Autónoma Popular, a qual deveria ser gerida por Comités
de Ocupação e de Gestão formados por trabalhadores, estudantes e professores.
Num texto relativamente longo de 14 de Maio, a Coordenação dos Comités de
Acção proclamou:
Contra a polícia era necessário dizer “A Sorbonne para os estudantes”. Agora que
ela está em nosso poder é necessário gritar “A Sorbonne para os trabalhadores”.
As faculdades que conquistámos devem ser utilizadas como a base vermelha
onde se organiza o movimento, de onde partem os grupos de propaganda em
direcção aos subúrbios e aos bairros populares, onde se procede diariamente ao
balanço da luta.
A partir de então as assembleias e discussões contínuas que ocorriam
na Sorbonne e noutras instalações universitárias, e de que foram tão ávidos
os jornalistas e até os historiadores, limitaram-se em boa medida a constituir
a componente folclórica do movimento, porque o essencial passava-se noutra
direcção e em outros lugares, nas fábricas ocupadas e na tentativa dos estudantes
de se juntarem aos trabalhadores nessas ocupações.
Enquanto durou a greve geral os estudantes procuraram ligar-se aos
trabalhadores e a direcção da CGT esforçou-se por impedir esta ligação. A 16
de Maio cerca de mil estudantes dirigiram-se às grandes fábricas Renault de
Billancourt, que haviam acabado de entrar em greve, e a CGT opôs-se a qualquer
contacto dos estudantes com os trabalhadores argumentando que “recusamos
qualquer ingerência externa”. A solidariedade era apelidada de “ingerência”. No dia
seguinte estudantes da UJCm-l, da UNEF, do Movimento do 22 de Março e da
JCR regressaram à Renault-Billancourt, mas mais uma vez a CGT impediu o
contacto entre estudantes e grevistas.
Nesse mesmo dia 17 de Maio a UNEF e o SNESup emitiram um comunicado
conjunto proclamando: “Pensamos que agora o elemento determinante da situação
é a entrada em luta dos operários que ocupam numerosas fábricas. [...] apelo para
um apoio concreto às lutas operárias, participando numa primeira fase em comícios,
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nomeadamente na região de Paris, nos subúrbios, e precisamente com os operários
em greve”. E a Moção Política Geral aprovada na Assembleia Geral realizada na
Sorbonne a 20 de Maio, depois de recordar que “1º - a ocupação das Faculdades
constitui apenas um aspecto particular e conjuntural da sua acção, 2º - o ocupação e
as tarefas realizadas durante a ocupação devem estar ao serviço da luta geral contra
o sistema capitalista”, passou ao seguinte considerando: “que o objectivo político
é o derrube do regime pelos trabalhadores e que a ocupação deve ser realizada
nesse quadro político; que, com efeito, o ensino só corresponderá às necessidades
da população quando esta tiver realmente derrubado o poder capitalista; que não
podendo a remodelação da universidade ser concebida fora deste quadro, ela não
deve, por conseguinte, ser prosseguida somente pelas pessoas que aí trabalham hoje,
mas pelo conjunto dos trabalhadores”, concluiu lembrando que “a tarefa essencial
dos estudantes é ligarem-se ao combate da classe operária contra o regime”.
É impossível no curto espaço deste artigo relatar o que foi a greve geral de Maio
e Junho de 1968 e limito-me a chamar a atenção para um aspecto que se repercutiu
directamente na relação entre o movimento estudantil e a luta operária. A 27 de
Maio os trabalhadores das grandes empresas rejeitaram o protocolo de Grenelle,
proposto pelo governo e pelo patronato e que ou foi aceite pelos dirigentes da CGT
ou pelo menos não deparou com a sua discordância − eles jamais foram claros a
este respeito. Cerca de 10 milhões de assalariados decidiram prosseguir a greve e de
então em diante a CGT seguiu a táctica de fragmentar a luta nas negociações e nos
acordos. Num longo panfleto de 5 de Junho, em que lançou a ideia de convocar
Estados-Gerais dos Trabalhadores e dos Estudantes (uma espécie de enormes
assembleias gerais deliberativas que reunissem todo o movimento), o Comité de
Greve da FNAC questionou indignadamente: “Poderemos admitir que a greve de 10
milhões se converta em mil greves de empresas divididas?”. A 7 de Junho, com o cinismo em
que era mestre, L’Humanité (o jornal diário do Partido Comunista) ostentava como
título de primeira página “Com a força da vitória, milhares de trabalhadores retomaram o
trabalho” − isto quando a greve prosseguia em numerosos sectores.
Os estudantes continuavam entretanto a procurar a ligação com as empresas
em luta. A 31 de Maio um comunicado da Coordenação dos Comités de Acção
insistiu: “A nossa força reside nas ocupações de fábrica”. E, muito significativamente,
a 1 de Junho um comunicado da UNEF incitou os estudantes a dirigirem-se às
fábricas em greve da Renault e da Citroën.
No dia 6 de Junho 4000 CRSs (Compagnies Républicaines de Sécurité, um
corpo policial fortemente militarizado) ocuparam as fábricas Renault em Flins
e expulsaram os piquetes de greve. No dia seguinte numerosos estudantes
mobilizados pelo apelo da UJCm-l e do Movimento do 22 de Março foram
apoiar os operários dos piquetes que guardavam as ruas e estradas de acesso às
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fábricas, e nesta ocasião a CGT denunciou os bandos “organizados militarmente”
que “intervieram” em Flins. Se o leitor ainda não percebeu, estes bandos eram,
na visão dos dirigentes da CGT, não os polícias mas os estudantes. Nesse
mesmo dia 7 de Junho, num comício em Elisabethville, junto às fábricas Renault
de Flins, consumou-se a junção entre estudantes e trabalhadores. Apesar da
oposição dos representantes da CGT, e graças à exigência dos trabalhadores
de base, um estudante do Movimento do 22 de Março tomou a palavra. Em
seguida, perante novas tentativas de obstrução por parte da CGT, e uma vez mais
graças às reclamações dos trabalhadores, tomou a palavra o secretário-geral do
SNESup, Alain Geismar. Durante quatro dias, foi junto com os estudantes que os
operários organizaram a resistência às cargas policiais, até que em 11 de Junho as
autoridades se viram obrigadas a fechar as fábricas Renault de Flins.
O segundo período do Maio de 68 completou-se em Flins, onde estudantes
e operários grevistas conseguiram ultrapassar os obstáculos erguidos pela
burocracia da CGT e consolidaram praticamente a sua junção, no combate contra
as cargas policiais. A problemática que dera início ao movimento, de remodelar a
universidade capitalista graças a uma acção conjunta com os trabalhadores, teve
em Flins o seu primeiro esboço de efectivação, mas já no terreno operário e fabril.
Poderiam os patrões e os governantes admitir esta situação revolucionária?
A 14 de Junho havia ainda cerca de um milhão de grevistas. Nos dias 13
e 15 de Junho o governo proibiu todas as manifestações e onze organizações
de extrema-esquerda foram dissolvidas, as suas publicações proibidas, os seus
militantes presos ou perseguidos. Foi este o fundamento do Estado de Direito tal
como o conhecemos hoje, baseado na generalização das medidas de excepção. A
repressão ao Maio de 68 teve outra consequência, igualmente a longo prazo. O
Partido Comunista Francês, que se havia oposto à movimentação contestatária
e que em seguida disputara as eleições legislativas de 30 de Junho reivindicando-se de ter sido o primeiro partido em França a denunciar o esquerdismo, viu se condenado á irrelevância, ele que tanta importância havia tido e que fora hegemónico em boa parte da vida intelectual do país. Por seu lado, a CGT, se é certo que continua a ser a principal central sindical francesa, detém hoje esta posição numas circunstâncias em que só 8% da força de trabalho se encontra
sindicalizada. A oposição dos comunistas franceses ao Maio de 68 condenou-os
perante a esquerda anticapitalista, sem que a direita ordeira lhes agradecesse o
serviço prestado.
 Foi este o duplo legado que nos deixaram os revolucionários de Maio de 68, e
que continua por resolver: uma democracia que recorre cada vez mais a métodos  totalitários e uma esquerda anticapitalista que ainda não encontrou as formas da sua reorganização.
       

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