“Do que é individual, não se pode falar.” Esta frase - que, segundo
Ginzburg* resume o espírito da ciência galileana - influenciou o conjunto de
modelos científicos preocupados em construir leis gerais, provocando inclusive
águas turbulentas no barco em que navegam as ciências sociais. Falar, portanto,
da exceção, do individual ou da raridade, constitui um dos grandes desafios
enfrentado pelas ciências sociais, em sua tarefa cotidiana de articular o geral
e o particular.
Eis por que o livro de Norbert Elias, com o sugestivo
título Mozart - Sociologia de um gênio traz instigantes idéias sobre as articulações complexas entre o individual
e o social. A vida de Mozart é analisada no livro como expressão emblemática de
valores de uma sociedade da corte, que acolhia de forma contraditória músicos
burgueses, provocando conflitos e limitações que refletiam a “tensão crônica
entre os círculos do establishment cortesão e os grupos burgueses outsiders”.
Eram tensões que estavam circunscritas não só ao espaço das classes
sociais, mas ao destino de artistas que, como Mozart, experimentaram os limites
de um padrão estabelecido. Assim, o
individual e o social, antes de serem dimensões da vida em pólos opostos, se
complementam sob o prisma dessa dupla história, permeada por conflitos oriundos
de uma sociedade capaz de produzir artistas, mas ainda sem condições de acolhê-los.
O livro é composto de duas partes, seguindo uma espécie de cronologia da
vida do compositor entremeada pela análise da sociedade da época. Na primeira parte, nomeada “reflexões
sociológicas sobre Mozart”, o autor enfatiza o processo de formação musical do
compositor, relacionando educação familiar e espaços públicos de apresentação
da arte.
Na segunda parte é enfatizado o
drama da vida de Mozart, a partir de sua tentativa de se emancipar da família e
da cidade onde morava desde a infância.
Além da compreensão da vida trágica de Mozart, a questão que se encontra subjacente às análises de Elias é a
seguinte: quais as condições de emergência da criatividade na sociedade da
corte?
Ora, se nos campos da
literatura e da filosofia era possível, na Alemanha do século XVIII, superar os
padrões aristocráticos a partir da constituição de um público leitor, com
respeito à música a situação era diferente, implicando a dependência dos
círculos aristocráticos para assegurar a própria sobrevivência. Nesse sentido,
a vocação era limitada pela possibilidade de um cargo permanente na corte. Os
músicos, indispensáveis ao bom funcionamento do palácio do príncipe, eram
espécie de criados, cujas funções de agradar definiam limites ao talento
individual.
Enquanto expressão do artista
burguês na corte, o talento de Mozart antecede o momento propício de acolhida e
com ele o sofrimento da desadaptação ou “ambivalência que pode ser resumida na
seguinte dicotomia: identificação com a nobreza da corte e seu gosto; ressentimento
pela humilhação que ela lhe impunha” (p. 24).
O talento é também fruto de uma educação esmerada, dirigida pelo
desejo do pai, nem sempre em consonância com o desejo do filho, rebelde em sua
arte de criar e esperar reconhecimento em um círculo mais amplo. Enquanto o pai esperava do filho a
aprendizagem de uma tradição que seria reproduzida conforme os ofícios
artesanais, ele se rebelava em prol de sua autonomia e criatividade.
O livro de Elias, na pluralidade de
perspectivas e personagens da vida familiar de Mozart, constitui uma espécie de
história das significações sociais e subjetivas, que dá luz e cor às cenas da
época. O homem e o artista são notas de uma mesma sinfonia que se apresenta
nessa combinação especial, capaz de formar o dom da genialidade.
Incursionando por uma abordagem freudiana, Elias pensa na sublimação
como processo através do qual o artista dá vez aos seus sonhos e frustrações.
Desde pequeno, Mozart expõe suas energias instintivas na criação musical. O
ambiente motivador, propiciado por um pai de acentuada tendência pedagógica,
encontrava eco nas satisfações advindas desse encontro propulsor de
transformações de energia em obra de arte.
Há que se distinguir, no entanto, o espaço de separação entre o poder da
fantasia expresso em sonhos e o ato de criação. A superação da experiência
egóica exige intimidade com o material trabalhado, de modo a adquirir destreza,
que significa a desprivatização de fantasias: tornar o produto acessível a
outros.
A intimidade com as regularidades intrínsecas do material, ao lado da
espontaneidade, representa o desafio da experiência de criação. Dominar os
códigos do campo artístico e enveredar por novos caminhos define os espaços da
inovação, pois o “pináculo da criação artística é alcançado quando a
espontaneidade e a inventividade do fluxo-fantasia se fundem de tal maneira com
o conhecimento das regularidades do material e com o julgamento da consciência
do artista, que as fantasias inovadoras surgem como por si mesmas, satisfazendo
as demandas tanto do material como da consciência” (p. 6).
Mozart, portanto, seria o representante típico desse encontro entre
potencialidade criadora e domínio das possibilidades de torná-la pública,
transformando o sonho em matéria social. Desde criança, sua sensibilidade
auditiva se revelava nas brincadeiras acompanhadas por músicas que davam o
sentido do tempo e do espaço. A carência afetiva também aparecia desde a mais
tenra idade, conformando vínculos entre pai e filho através da linguagem
musical. Posteriormente, essa relação sofre clivagens, pois Mozart deixa,
gradativamente, de ser a afirmação do talento adaptado aos padrões da época
contra o desejo do pai.
A vida do artista segue trilhas descontínuas de sucesso. Músico precoce,
ele percorre tournées por diferentes cidades. O desejo de autonomia
experimentado na juventude implicava a recusa de trabalho humilhante em
Salzburgo e a busca de novas oportunidades, nas quais pudesse exercer sua arte
com maior independência. Posteriormente, sua criação artística parece pouco
compreendida, a exemplo da ópera Don Giovanni, recebida com frieza em
Viena. Revela-se, nesse momento, a explicitação de sua solidão artística,
acentuada pelo sentimento de também não ser amado pela esposa.
A narração de Elias demonstra a admiração do autor pelo artista
injustiçado, só reconhecido após sua morte. Não somente o artista produtor de
obras, mas o ser humano que experimentou a arte de criar nos limites de sua
época. Que viveu a criação artística como busca incessante de estima.
A tentativa de pensar o homem e o artista atravessa as reflexões de
Norbert Elias, a partir da compreensão de sua personalidade brincalhona,
moldurada por um rosto “que nada tinha de heróico”. O aparente contraponto
entre a simplicidade e a genialidade, a produção musical e o comportamento
cotidiano e irreverente do compositor atravessa a compreensão de sua
personalidade.
É possível dizer que o livro procura dar conta da trilogia indivíduo,
história e sociedade, tarefa das mais complexas para as ciências sociais, que
foi objeto das reflexões do autor desde sua tese de habilitação, defendida em
1993, que trata da sociedade da corte. A história individual e a sociedade da
corte com seus costumes e regras fazem a articulação entre esses elos que
constituem a “sociologia de um gênio”.
Como
grande estudioso da cultura, Elias analisa a criação artística à época de
Mozart, tendo por parâmetro processos complexos, típicos de uma temporalidade
histórica. Tomando tal direção, dá prosseguimento a análises feitas
anteriormente sobre O processo civilizatório, publicado no Brasil em 1994.
Ressalta-se, no entanto, em seu novo trabalho sobre a vida de Mozart, uma maior
preocupação com a especificidade de valores e costumes que se organizam em
torno da produção artística.
A arte, na sociedade da corte, está condicionada ou limitada pela
incapacidade de constituição de um público consumidor anônimo e um criador
independente. O compositor é uma espécie de artista artesão que, realizando sua
obra mediante encomenda, pouco pode inová-la, sob pena de ferir as expectativas
dos financiadores.
Em tais circunstâncias, a criatividade de Mozart é o desafio de uma
personalidade inquieta, que se permite fugir às expectativas de um padrão
musical limitado. É a inexistência de um campo artístico autônomo que impede
criações artísticas independentes, a serem consumidas par um público não
restrito à aristocracia da corte.
Nesse ponto, as idéias de Elias a respeito da inexistência de uma arte
capaz de produzir seus próprios parâmetros de avaliação podem ser comparadas à
discussão de Pierre Bourdieu sobre o surgimento do campo artístico. A
emergência do campo artístico acontece no momento em que os padrões estéticos,
o mercado de consumo e os artistas se tornam independentes do controle
aristocrático. Elias, no entanto, está mais preocupado em entender as regras de
conduta que circundam o mundo da criação musical que as estratégias simbólicas,
efetivadas por agentes do campo da arte. Para ele, a transição da arte de
artesão para a arte de artista “é característica de um deslocamento
civilizador”, que implica a capacidade de o produtor da arte depender mais de
sua auto-restrição pessoal e, nesse sentido, controlar e canalizar sua fantasia
artística.
Essa transição da arte de artesão para a arte de artista não acontecia
simultaneamente em todos os lugares da Europa, nem tampouco em todos os
domínios artísticos. A literatura alemã se desenvolve vinculada a um público de
classe média, diferentemente da música no tempo de Mozart, influenciada
sobretudo pelo gosto artesão. Assim explica Elias as contradições entre o
artista e seu tempo: “O fato de Mozart depender materialmente da aristocracia
da corte, quando ele já tinha se constituído em artista autônomo que
primariamente buscava seguir o fluxo de sua própria imaginação e os ditames de
sua própria consciência artística, foi a principal razão de sua tragédia” (p.
136).
O livro de Elias, na tentativa de unir dimensões individuais sociais e
históricas, supera em muito a perspectiva biográfica. E aqui valeria a pena
chamar a atenção para o teor metodológico das reflexões contidas nessa
biografia. Em primeiro lugar, a compreensão do autor de que a cultura segue uma
dinâmica complexa, efetivada através de costumes e práticas que se cristalizam
e revelam sentido a longo prazo.
O
processo civilizador, tema explorado em outro livro, traz a trajetória de
relacionamentos sociais, revelando a paisagem de urna época através do
desenvolvimento de modos de conduta. Nessa direção, Elias segue a tradição
weberiana de pensar os elementos de racionalização presentes na cultura,
conforme observou Sérgio Míceli em resenha publicada sobre o livro, na Folha
de S. Paulo, em 1 /5/95.
Outro aspecto importante, do ponto de vista metodológico, é a relação
entre dimensões psicológicas e sociais. A criação artística é, então, percebida
como espaço de sublimação, isto é, efeito de uma transformação de impulsos
inconscientes ou fantasias. Assim, Mozart deu forma ao material de sua
fantasia, desde a mais tenra infância, quando aprendeu a sonhar e a se
expressar através da música.
A trajetória pessoal e o contexto social constituem fios articulados que
nos trazem ensinamentos para superar a dicotomia entre ator e estrutura social
no âmbito da análise sociológica. Em livro autobiográfico (Norbert Elias par
lui même, publicado em Paris em 1994), Elias lembra que uma das missões
centrais da sociologia é inserir o homem na sucessão de gerações, colocando-o
em seu tempo histórico-social.
As cartas pessoais, que são utilizadas coma material empírico para a
recuperação da história de Mozart, revelam aspectos interessantes de sua
privacidade, contribuindo para que se possa compreender a sua dimensão humana.
Tais cartas, interpretadas segundo os padrões da época, dizem da intimidade
brincalhona do compositor, bem como dos seus anseios de se tornar independente
da corte de Salzburgo.
A construção do argumento de Elias traz elementos para que se
compreendam as vicissitudes dos outsiders que superam os padrões de sua
época. Os constrangimentos decorrentes dessa situação permitem que se possa
aplicar o raciocínio para outras práticas irreverentes de revolucionários de
todas as épocas, que inovam em diferentes espaços da vida social, conforme
observou Míriam Goldenberg em resenha sobre o livro de Elias (Jornal do
Brasil, 14/1195).
O livro Sociologia de um gênio discute com maestria e
profundidade a concepção de gênio em uma sociedade pré-romântica, ainda não
receptiva a essa condição.
Mozart foi, assim, precoce na vida, na arte e na morte. O reconhecimento
posterior de sua obra mostra o descompasso do tempo, desafinado nos
instrumentos de percepção de um talento que brotava como fruto fora da estação.
Nesse sentido, a cada música do compositor que aprendemos a ouvir e a
amar prestamos nossa reverência tardia.
O livro de Elias é uma laboriosa, sutil e profunda homenagem ao
compositor. Coincidentemente, é publicado após a sua morte pelas mãos de
Michael Schröter, que uniu conferências, textos e notas, transformando o rascunho
em livro. Em tais circunstâncias, repete o reconhecimento da obra após o
desaparecimento do autor, afirmando a imortalidade da criação.
* GINZBURG, Carlo. (1989), Mitos, emblemas e sinais: morfologia e
história. Tradução de Frederico Carotti. São Paulo, Companhia das Letras.
IRLYS ALENCAR FIRMO BARREIRA é doutora em Sociologia pela
Universidade de São Paulo e professora da Universidade Federal do Ceará.
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